21.5.23

OPINIÃO: Crime ou pecado?

Um recente acórdão do Tribunal Constitucional (TC) considera, pela primeira vez, que lucrar com a prostituição (crime de lenocínio), desde que esta seja exercida livremente, sem violência ou coação, não deve ser crime.
O tema é polémico, há várias decisões de primeira instância no sentido de não condenar o proxenetismo e até já dividiu os juízes, mas só agora houve maioria no Palácio Ratton quanto à inconstitucionalidade do crime de lenocínio. O Ministério Público já recorreu e pede que o TC se pronuncie a título definitivo. Se a nível jurídico não há consenso, a nível social muito menos, até porque toca noutro tema fraturante: a prostituição não sendo ilegal (desde 1983), também não existe enquanto profissão regulamentada.
Há vários países onde o trabalho na indústria do sexo - inclui prostituição, pornografia, striptease, linhas eróticas ou serviços semelhantes - está enquadrado do ponto vista legal e fiscal, com os mesmos direitos e deveres do que qualquer outra atividade. Todavia, a simples definição de trabalho causa polémica em Portugal: para os opositores da legalização - como algumas associações feministas, a CGTP e a UGT -, a prostituição é sempre uma forma de violência e de exploração, em especial da mulher, pelo que não se pode falar de trabalho. E argumentam que a legalização só iria beneficiar proxenetas e traficantes de seres humanos e promover o turismo sexual.
Ou seja, quem está contra a legalização argumenta que teria o mesmo efeito prático do que a proibição...
Para a Rede Sobre Trabalho Sexual, o reconhecimento social e jurídico do trabalho sexual contribuiria para a dignificação de quem o exerce, a melhoria das condições laborais e de segurança, reduziria os riscos para a saúde e diminuiria a discriminação e a exclusão social.
Um estudo da Universidade do Minho, divulgado em 2021, conclui que o atual paradigma é ineficaz , não protege os mais vulneráveis, e critica que o legislador confunda quem pratica prostituição com vítimas de exploração sexual.
Que o debate jurídico está claramente minado pela moralidade é assumido pelo antigo presidente do TC. Numa nota a propósito de um acórdão de novembro de 2016 em que votou vencido, Costa Andrade dizia que considerar o lenocínio simples (sem violência) crime é colocar o direito penal ao serviço da "prevenção ou repressão do pecado", num exercício de moralismo atávico" incompatível com o "Estado de direito da sociedade secularizada e democratizada dos nossos dias".
* Helena Norte - Jornal de Notícias - 15.5.2023