Faleceu
há um ano, a 16 de Maio de 2022, José Miguéns Louro Hilário, um
Amigo que hoje recordo e a quem presto a minha homenagem, com o texto
que escrevi na altura da sua morte. Aqui fica como a evocação e o
Registo da Memória de um Homem Bom.
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A
morte de José Hilário: Marinheiro
de Abril e Cidadão do Mundo
José
Miguéns Louro Hilário, faleceu no passado dia 16 no Hospital Amato
Lusitano em Castelo Branco, após meses de doloroso sofrimento.
Marinheiro de Abril, autarca, dirigente associativo, poeta, contador
de histórias, cidadão do mundo, a sua vida, multifacetada, foi
marcada pela sobriedade e pela humildade com que se relacionou com
toda a gente. Foi o último presidente da Junta de Freguesia de S.
Simão (Nisa), eleito durante três mandatos, até à famigerada "Lei
Relvas" (2013) que extinguiu ou agrupou inúmeras freguesias do
país.
Era
uma vez...
"
Poderia começar, assim, a história de um menino – ou de uma
criança que não foi menino -, nascido numa das aldeias mais
ostracizadas do concelho de Nisa.
Por
ali viveu, no tempo de todos os sonhos e fantasias, entre rebanhos e
caminhos sinuosos, o canto dos pássaros, a fresquidão das águas
nos ribeiros, as brincadeiras com os companheiros da escola, crianças
que, como ele, não tiveram tempo nem lugar para serem meninos.
E a
serra, sempre ali, presente, omnipotente, como sentinela e guardiã
do seu território de vivências e aventuras.
Interrogava-se,
vezes sem conta, sobre o que estaria por detrás daquele maciço
enorme e um dia, lágrimas a escorrerem-lhe pela fronte, aventurou-se
para lá dos confins da serra.
Deu-se,
conta, então, de que havia um mundo imenso a descobrir e fez-se
marinheiro. Navegou por mares e oceanos, conheceu novas terras e
gentes de outras falas, costumes e raças. Gentes que, como ele,
faziam seus, o pensamento de Martin Luther King e tinham um sonho:
Liberdade e Igualdade.
Nas
suas viagens, contemplou milhões de estrelas, algumas traziam-lhe a
luz que irradiava do seu cantinho, lá bem longe, ao pé da serra
imponente.
Seria,
ali, no seu pequenino mundo, aconchegadinho à serra, naquela aldeia
branca com as casas em socalco, de gente honrada e livre, a sua terra
de promissão.
Criada
a filha, a ela retornou, como que por encanto.
Tinha
agora todo o tempo do universo para falar com as estrelas, muitas
delas já conhecidas desde os mares do sul, de reavivar as histórias,
antigas, que ouvira, quantas vezes, por entre o esganar de um fado e
os acordes do harmónio, que se repercutiam na rua, saídos da
taberna.
Histórias
das gentes, poesia dos lugares e recantos de uma terra, onde a
liberdade – reprimida e aprisionada – nunca chegou a ser vencida.
José
Hilário, o menino desta história, não quis guardar para si, todo o
imaginário desse “tempo de brasa”, que foram as décadas de 50,
60 e 70 do século passado.
Debitou
para o livro que aqui se apresenta, traços, amargos ou ligeiros,
alguns com sugestiva dose de brejeirice, que tanto falam da guerra
(colonial) ou da saga da emigração portuguesa, sentida de modo
particular no concelho de Nisa e que provocou o abandono das terras e
dos campos, a morte anunciada da vida rural.
De
permeio, recria lendas e tradições, histórias do povo, de
acentuado cariz etnográfico, histórias que têm o condão de nos
mostrar, que as terras pequenas, por o serem, não deixam, também,
de ter a sua história local, modos particulares de ser, agir, viver
em comunidade, a sua identidade própria.
Escrita,
arrancada do “fundo da alma e da memória” este livro é, na sua
diversidade, um tributo à aldeia do Pé da Serra e por sequência, à
freguesia de S. Simão, com 450 anos de existência.
É,
também, a homenagem de um marinheiro, navegador de mundos e fundos
que, chegado ao seu porto de abrigo e ao Outono da vida, deixa, para
os vindouros, uma mensagem de esperança e de incentivo à luta pelos
direitos de cidadania e pela Liberdade".
Este
texto escrevi-o em Dezembro de 2006 para o livro "Pinceladas
de Poesia e Contos da Aldeia" da autoria de José Hilário.
Texto que resume o percurso de um homem de grande sobriedade e
capacidade intelectual, amante da poesia e da astronomia, marinheiro
que, de artífice em Vila Franca de Xira, foi singrando na Marinha
Portuguesa através de porfiado estudo, com diversos cursos em
electrónica, manutenção de equipamentos, especialmente radares e
sistemas de navegação, conhecimentos que adquiriu tanto em Portugal
como na Holanda e Alemanha. Serviu durante 38 anos a Marinha
Portuguesa, sendo louvado e condecorado por duas vezes com a Cruz
Naval de 3ª classe. Viajou por meio mundo, conheceu outros povos e
culturas e em 1998 passou à situação de reserva com o posto de
capitão-tenente. Um oficial da Marinha que, de imediato, acedeu ao
chamamento da aldeia distante e durante três mandatos serviu a sua
Freguesia, S. Simão, como um autarca dedicado, competente e sabendo
ouvir as aspirações dos seus conterrâneos. Desde a abertura de
novos arruamentos ao calcetamento de outros nas aldeia de Pé da
Serra e Vinagra, à construção de uma estação de tratamento de
esgotos, o trabalho dos executivos liderados por José Hilário
impuseram-se à consideração dos habitantes da freguesia que lhe
foram renovando a confiança.
Após
a designada Reforma Administrativa imposta pela Lei 11-A/2013, a
freguesia de S. Simão, com mais de 460 anos de existência, foi
integrada na União de Freguesias de Espírito Santo, Nossa Senhora
da Graça e S. Simão, tendo José Hilário continuado a integrar a
Assembleia de Freguesia de maioria CDU, coligação pela qual sempre
fora eleito.
Homem
de cultura e amante da música, José Hilário foi presidente da
direcção da Sociedade Musical Nisense e na sua aldeia ocupou igual
cargo no Centro Cultural e Recreativo “Os Amigos do Pé da Serra”
e na direcção do Centro de Dia. Não acabou, todavia, o seu labor
na terra-mãe e apesar da idade, fez-se agricultor e transformou, com
grande esforço braçal e apreciável investimento monetário, um
terreno quase inóspito numa quinta aprazível, nas faldas da serra
de S. Miguel.
Morreu
o homem de Abril, o construtor de sonhos, o amigo e o poeta. A sua
obra, os seus poemas e histórias da aldeia, continuarão a "falar"
por ele e a dizerem-nos que, tal como escreveu Fernando Pessoa:
"valeu a pena, porque a alma não é (era) pequena".
Mário
Mendes – Maio 2022
EU,
AS ESTRELAS E A LUA
Já fui da velha estrada, vagabundo
Sem
eira nem beira. Mas, resignado.
Já
me guiei pelas estrêlas, moribundo
Comi
pão pelo diabo amassado
Já
fui ao mar alto, numa jangada
Em
noite de trovoada medonha
Já
tive no bornal, tudo e nada
Sem
tornar verdade o que se sonha
Já
dormi ao relento em noite fria
Entre
duas papoilas rubras num trigal
Envolto
num lençol de maresia
Segui
sempre o meu caminho a esmo
Só
de madrugada a lua me dizia
Que
só eu era igual a mim mesmo.
* José Hilário