16.5.23

PÉ DA SERRA (Nisa): JOSÉ HILÁRIO: A MEMÓRIA DE UM HOMEM BOM

 
Faleceu há um ano, a 16 de Maio de 2022, José Miguéns Louro Hilário, um Amigo que hoje recordo e a quem presto a minha homenagem, com o texto que escrevi na altura da sua morte. Aqui fica como a evocação e o Registo da Memória de um Homem Bom.
******
A morte de José Hilário: Marinheiro de Abril e Cidadão do Mundo
José Miguéns Louro Hilário, faleceu no passado dia 16 no Hospital Amato Lusitano em Castelo Branco, após meses de doloroso sofrimento. Marinheiro de Abril, autarca, dirigente associativo, poeta, contador de histórias, cidadão do mundo, a sua vida, multifacetada, foi marcada pela sobriedade e pela humildade com que se relacionou com toda a gente. Foi o último presidente da Junta de Freguesia de S. Simão (Nisa), eleito durante três mandatos, até à famigerada "Lei Relvas" (2013) que extinguiu ou agrupou inúmeras freguesias do país.
Era uma vez...
" Poderia começar, assim, a história de um menino – ou de uma criança que não foi menino -, nascido numa das aldeias mais ostracizadas do concelho de Nisa.
Por ali viveu, no tempo de todos os sonhos e fantasias, entre rebanhos e caminhos sinuosos, o canto dos pássaros, a fresquidão das águas nos ribeiros, as brincadeiras com os companheiros da escola, crianças que, como ele, não tiveram tempo nem lugar para serem meninos.
E a serra, sempre ali, presente, omnipotente, como sentinela e guardiã do seu território de vivências e aventuras.
Interrogava-se, vezes sem conta, sobre o que estaria por detrás daquele maciço enorme e um dia, lágrimas a escorrerem-lhe pela fronte, aventurou-se para lá dos confins da serra.
Deu-se, conta, então, de que havia um mundo imenso a descobrir e fez-se marinheiro. Navegou por mares e oceanos, conheceu novas terras e gentes de outras falas, costumes e raças. Gentes que, como ele, faziam seus, o pensamento de Martin Luther King e tinham um sonho: Liberdade e Igualdade.
Nas suas viagens, contemplou milhões de estrelas, algumas traziam-lhe a luz que irradiava do seu cantinho, lá bem longe, ao pé da serra imponente.
Seria, ali, no seu pequenino mundo, aconchegadinho à serra, naquela aldeia branca com as casas em socalco, de gente honrada e livre, a sua terra de promissão.
Criada a filha, a ela retornou, como que por encanto.
Tinha agora todo o tempo do universo para falar com as estrelas, muitas delas já conhecidas desde os mares do sul, de reavivar as histórias, antigas, que ouvira, quantas vezes, por entre o esganar de um fado e os acordes do harmónio, que se repercutiam na rua, saídos da taberna.
Histórias das gentes, poesia dos lugares e recantos de uma terra, onde a liberdade – reprimida e aprisionada – nunca chegou a ser vencida.
José Hilário, o menino desta história, não quis guardar para si, todo o imaginário desse “tempo de brasa”, que foram as décadas de 50, 60 e 70 do século passado.
Debitou para o livro que aqui se apresenta, traços, amargos ou ligeiros, alguns com sugestiva dose de brejeirice, que tanto falam da guerra (colonial) ou da saga da emigração portuguesa, sentida de modo particular no concelho de Nisa e que provocou o abandono das terras e dos campos, a morte anunciada da vida rural.
De permeio, recria lendas e tradições, histórias do povo, de acentuado cariz etnográfico, histórias que têm o condão de nos mostrar, que as terras pequenas, por o serem, não deixam, também, de ter a sua história local, modos particulares de ser, agir, viver em comunidade, a sua identidade própria.
Escrita, arrancada do “fundo da alma e da memória” este livro é, na sua diversidade, um tributo à aldeia do Pé da Serra e por sequência, à freguesia de S. Simão, com 450 anos de existência.
É, também, a homenagem de um marinheiro, navegador de mundos e fundos que, chegado ao seu porto de abrigo e ao Outono da vida, deixa, para os vindouros, uma mensagem de esperança e de incentivo à luta pelos direitos de cidadania e pela Liberdade".
Este texto escrevi-o em Dezembro de 2006 para o livro "Pinceladas de Poesia e Contos da Aldeia" da autoria de José Hilário. Texto que resume o percurso de um homem de grande sobriedade e capacidade intelectual, amante da poesia e da astronomia, marinheiro que, de artífice em Vila Franca de Xira, foi singrando na Marinha Portuguesa através de porfiado estudo, com diversos cursos em electrónica, manutenção de equipamentos, especialmente radares e sistemas de navegação, conhecimentos que adquiriu tanto em Portugal como na Holanda e Alemanha. Serviu durante 38 anos a Marinha Portuguesa, sendo louvado e condecorado por duas vezes com a Cruz Naval de 3ª classe. Viajou por meio mundo, conheceu outros povos e culturas e em 1998 passou à situação de reserva com o posto de capitão-tenente. Um oficial da Marinha que, de imediato, acedeu ao chamamento da aldeia distante e durante três mandatos serviu a sua Freguesia, S. Simão, como um autarca dedicado, competente e sabendo ouvir as aspirações dos seus conterrâneos. Desde a abertura de novos arruamentos ao calcetamento de outros nas aldeia de Pé da Serra e Vinagra, à construção de uma estação de tratamento de esgotos, o trabalho dos executivos liderados por José Hilário impuseram-se à consideração dos habitantes da freguesia que lhe foram renovando a confiança.
Após a designada Reforma Administrativa imposta pela Lei 11-A/2013, a freguesia de S. Simão, com mais de 460 anos de existência, foi integrada na União de Freguesias de Espírito Santo, Nossa Senhora da Graça e S. Simão, tendo José Hilário continuado a integrar a Assembleia de Freguesia de maioria CDU, coligação pela qual sempre fora eleito.
Homem de cultura e amante da música, José Hilário foi presidente da direcção da Sociedade Musical Nisense e na sua aldeia ocupou igual cargo no Centro Cultural e Recreativo “Os Amigos do Pé da Serra” e na direcção do Centro de Dia. Não acabou, todavia, o seu labor na terra-mãe e apesar da idade, fez-se agricultor e transformou, com grande esforço braçal e apreciável investimento monetário, um terreno quase inóspito numa quinta aprazível, nas faldas da serra de S. Miguel.
Morreu o homem de Abril, o construtor de sonhos, o amigo e o poeta. A sua obra, os seus poemas e histórias da aldeia, continuarão a "falar" por ele e a dizerem-nos que, tal como escreveu Fernando Pessoa: "valeu a pena, porque a alma não é (era) pequena".
Mário Mendes – Maio 2022

EU, AS ESTRELAS E A LUA

Já fui da velha estrada, vagabundo
Sem eira nem beira. Mas, resignado.
Já me guiei pelas estrêlas, moribundo
Comi pão pelo diabo amassado

Já fui ao mar alto, numa jangada
Em noite de trovoada medonha
Já tive no bornal, tudo e nada
Sem tornar verdade o que se sonha

Já dormi ao relento em noite fria
Entre duas papoilas rubras num trigal
Envolto num lençol de maresia

Segui sempre o meu caminho a esmo
Só de madrugada a lua me dizia
Que só eu era igual a mim mesmo.
* José Hilário