14.5.23

OPINIÃO: Matar e morrer

Matar. Como normalmente sucede em episódios de fúria legislativa, a nova Lei do Tabaco enferma de um mal que acaba por contaminar negativamente as boas intenções que lhe subjazem: foi pensada com olhos de cidade. Quer isto dizer que a lógica proibicionista no que se refere à abolição de pontos de venda não se pode aplicar, de forma cega, a todo o território. Porque embora a lei seja geral, Portugal está longe de ser homogéneo. Nem todos os cidadãos dispõem de alternativas como aqueles que vivem nas cidades. Depois, acabar com a venda de tabaco em restaurantes, cafés e bares fora dos grandes centros urbanos (mas também nestes) é matar uma economia já de si frágil, condenando ao infortúnio milhares de postos de trabalho. É, no fundo, institucionalizar a discriminação por decreto. Em particular nas zonas do Interior, atrás do negócio da venda de tabaco estão muitos outros, como a venda de cafés, bebidas, alimentos, jogos sociais, jornais e revistas. Nesse Portugal esquecido até na hora de proibir não há tabacarias, aeroportos e estações ferroviárias e rodoviárias a rodos. Garantir uma geração livre de tabaco até 2040 é uma meta sonante e meritória, mas preocupemo-nos em não matar a geração de 2023, usando o proverbial bom senso. Esse não tem idade e faz milagres pela saúde.
Morrer. A morte medicamente assistida deverá, finalmente, materializar-se, depois de anos e anos de debate, de avanços e recuos, de medos, preconceitos, guerras ideológicas, religiosas, legais e médicas. O diploma que o presidente da República se verá agora obrigado a promulgar não resulta de um devaneio de alguns partidos e de movimentos civis irresponsáveis. É o produto de uma longa reflexão coletiva, partilhada com todos os portugueses e devidamente filtrada pelo Tribunal Constitucional e por Marcelo Rebelo de Sousa. É verdade que o PS forçou a nota com a Presidência, deixando alguns dos reparos de Marcelo sobre a eutanásia por atender, mas esse é o preço a pagar pelo regular funcionamento das instituições. Além do mais, parece haver disponibilidade para acautelar as preocupações do chefe de Estado na fase de regulamentação da lei. Seja como for, e caso a norma realmente se torne prática (algo que, dado o passado recente, é sempre arriscado garantir), o dia de ontem foi histórico para Portugal. Consagrar o direito a morrer num contexto de sofrimento extremo é garantir o direito a viver com dignidade.

* Pedro Ivo Carvalho in Jornal de Notícias - 13.5.2023