14.5.23

CRÓNICAS DA TABANCA: Maio, maduro Maio, em Bissau

Há 49 anos, num dos dias de Maio, cheios de alegria e Liberdade e ainda alguma apreensão, neste edifício da imagem, que é a sede do Benfica de Bissau (já era, na altura) participei pela primeira vez na vida, num Grande Comício, uma  Reunião Geral das Forças Armadas, com representantes de todas as unidades militares da cidade. Foi uma coisa nunca vista, quase indescritível e reveladora do espírito e da ânsia de liberdade. O edifício cheio, a rebentar pelas costuras, toda a gente a querer falar e a "botar para fora" anos e anos de palavras sufocadas, aprisionadas, amordaçadas. Fez-se alguma ordem, por fim. Camaradas já com alguma experiência política de sessões da CDE ou outras, apelaram à calma, mas as reivindicações não se fizeram esperar. Cada unidade queria isto e mais aquilo. Os furriéis milicianos do Q.G exigiam utilizar a piscina dos oficiais. Era um nunca mais acabar de pedidos e exigências, até que um grupo de enfermeiros dos Serviços de Saúde, com as batas "ensanguentadas", pediu silêncio e entre tantas centenas de militares fez ecoar pela enorme sala a palavra de ordem: "Não queremos ver mais sangue nos Hospitais! Queremos a Paz! Fim à Guerra!".  
Tanto bastou para que se pedisse, de imediato, o fim das hostilidades e a Independência, não só para a Guiné como para as colónias.
Esta sessão ficou gravada na minha memória e com o decorrer dos anos, fui melhorando a percepção do que ali ocorrera e destacando muitos dos pormenores que tinham sido focados em "bruto". Entre estes, a presença de alguns militares dos "comandos africanos", uma tropa de elite que começara com o famoso grupo de Marcelino da Mata, estimulado pelo general Spínola e evoluiu para um pelotão e depois para um Batalhão. Procuravam passar despercebidos, mas, sei, agora que, devido às proporções que o movimento tomara - e aquela reunião era um claro sinal - estavam apreensivos quanto ao seu futuro. Para muitos não foi o melhor, perseguidos pelos seus próprios irmãos e compatriotas. A liberdade tem por vezes, caminhos diversos e obscuros. Para uns começava um tempo de alegria e de esperança no futuro. Para outros, o mesmo tempo de mudança, significava medo, incerteza, apreensão. Talvez, por isso, nunca esqueci aqueles rostos que no mesmo salão, esfuziante de alegria e entusiasmo, disfarçavam o desconforto e a tristeza de um tempo amargo e incerto que adivinhavam próximo...
Mário Mendes