Foi o que se esperava. Um espetáculo de dimensão global, a chegada de Francisco a Lisboa. O apelo à paz, a crítica à eutanásia, o convite à prática do bem. Os políticos e o povo. A tudo isso assistimos nas emissões especiais dos média. Mas, eventualmente, o momento mais importante da visita papal a Portugal no âmbito da Jornada Mundial da Juventude não passou nos diretos: o encontro privado com algumas das quase cinco mil vítimas de abusos sexuais por membros da Igreja portuguesa. O que fica deste primeiro dia é a exortação do Papa à Igreja: é preciso ouvir o grito das vítimas.
Antes, Francisco falou de necessidade de estabelecer “rotas corajosas para a paz”, criticou as “leis sofisticadas da eutanásia” e desafiou os jovens a realizarem os “sonhos de bem”. Parafraseou Amália para dizer que “Lisboa tem cheiro de flores e de mar”, citou Camões e Sophia para falar do mar português, Pessoa para enfatizar que o que é “preciso é criar” e até Saramago para concluir que “o que dá verdadeiro sentido ao encontro é a busca”. Próximo, quebrou o protocolo para abençoar bebés, foi humano e caloroso - tudo o que se esperava deste Papa.
Nas suas deslocações, Francisco não deve ter visto os cartazes a lembrar os mais de 4800 menores violentados por membros da Igreja. Mas ele que obrigou as dioceses a criarem comissões para denúncia e impôs uma política de tolerância zero não precisa que lhe recordem a vergonha dos crimes sexuais praticados na Igreja. E na oração das vésperas, numa cerimónia que reuniu a cúpula do clero nos Jerónimos, Francisco apontou aos “escândalos” que desfiguram o rosto da instituição e que exigem “uma purificação humilde e constante, partindo do grito de sofrimento das vítimas que sempre se devem acolher e escutar”. Acolher e escutar, pede o Papa à Igreja portuguesa, a mesma que encobriu e desvalorizou durante décadas os crimes praticados por todo o país e que, mesmo perante centenas de relatos credíveis, se recusa a pagar indemnizações às vítimas - só mesmo se for obrigada pelos tribunais - e que não quis o memorial de reconciliação na JMJ.
Francisco, líder máximo de uma instituição perpetuada por rituais, códigos e cânones, sabe bem da importância do simbólico e da necessidade de atos redentores. E no primeiro dia desta Jornada deu um sinal inequívoco de que exige à Igreja que jamais volte a calar os pecados praticados pelos que se auguram ser representantes de Deus na Terra. Para que o grito dos inocentes não volte a ser silenciado.
* Helena Norte - Jornal de Notícias -03 agosto 2023