12.8.23

OPINIÃO: O inferno mora aqui

 
Os gritos. As correrias afogueadas. Os baldes de mão em mão e as mãos na cabeça. As chamas que se passeiam por entre as casas e que não poupam nada, nem roupa, nem carros, nem animais, nem projetos de vida, nem floresta. E as chamas que poupam, as que poupam, mas a lamber muros, a criar aflição a 200 metros de vidas construídas dentro de quatro paredes.
Por estes dias, como sempre, apesar da sombra violenta da tragédia de Pedrógão, banalizamos os relatos e as imagens de povoações inteiras deslocadas, e mal retemos os números avassaladores da área ardida, interrogando-nos sobre como é possível que, ano após ano, ainda haja alguma coisa para arder.
Mas há. Em hectares. Só na primeira semana de agosto, a área ardida mais do que duplicou. E a origem do mal não está na incapacidade ou capacidade dos bombeiros, nem no dispositivo de combate e nos meios disponibilizados.
O problema é mais fundo, acumula-se há décadas e revela a total ausência de verdadeiras políticas territoriais, transversal a vários governos, cujas grandes ideias não passam de promessas de amor profundo ao Interior - quando o abandono do Interior hoje começa no perímetro das grandes cidades - e de outras ideias para o ordenamento florestal cujos resultados são escassos.
Está tudo dito quando se olha para o incêndio que por estes dias devastou Castelo Branco, numa vasta mancha florestal que não ardia há 20 anos, mas onde nada foi feito para evitar que as chamas corressem naquela autoestrada de árvores.
Mais do que multas, de um cadastro forçado, são precisas iniciativas que possibilitem o repovoamento do país, que combatam as assimetrias regionais. E essas têm de passar pela criação de emprego, escolas condignas, saúde com qualidade e acessível a todos, a reconstrução de um modo de vida que se perdeu. Caso contrário, o que fica é um país cheio de acessos e de estradas para nenhures.
* Domingos de Andrade - Jornal de Notícias -10 agosto 2023