9.8.23

LIBERDADE - “Não tem competência”: CNE arrasa Câmara de Oeiras devido a remoção de cartaz sobre abusos sexuais na Igreja

A Comissão Nacional de Eleições (CNE) criticou a Câmara Municipal de Oeiras sobre a remoção do polémico cartaz ‘This is Our Memorial’, que denunciava a existência de “mais de 4800 crianças abusadas pela Igreja Católica em Portugal”, arrasando a decisão de ter retirado o ‘outdoor’, que acabaria recolocado noutro local, após uma onda de protestos.
Em comunicado, a CNE “no âmbito do seu entendimento sobre a liberdade de propaganda e liberdade de expressão”, indica que recebeu várias queixas dobre o episódio e por isso esclarece que a autarquia não tinha competências para declarar o cartaz como “publicidade ilegal”, como fez, e de o remover.
“A atividade de propaganda tem a sua sede no âmbito dos direitos, liberdades e garantias, isto é, num conjunto de normas ‘qualificadas’, suscetíveis de invocação direta pelos interessados e que vinculam todas as entidades públicas e privadas. A atividade de propaganda, com ou sem cariz eleitoral, seja qual for o meio utilizado, é livre e pode ser desenvolvida a todo o tempo, fora ou dentro dos períodos eleitorais, em locais públicos, especialmente os do domínio público do Estado e de outros entes públicos”, começa por explicar a CNE em comunicado.
O organismo aponta que “fora dos períodos eleitorais”, como era o caso, “são aplicadas as normas da Lei n.º 97/88, de 17 de agosto, a qual, regulando simultaneamente o exercício da atividade de propaganda (direito fundamental) e a ocupação do espaço público com publicidade, deve ser criteriosamente interpretada”.
Assim, o CNE indica que “os órgãos autárquicos ou outros não têm competência para regulamentar o exercício da liberdade de propaganda”, pelo que a Câmara de Oeiras não poderia ter retirado o cartaz ou movido o mesmo para outra localização, como acabou por acontecer, com o cartaz colocado junto à rotunda do Mercado de Algés, em zona menos visível do que anteriormente.
A CNE termina apela a que seja consultada em casos semelhantes, e que os serviços divulguem o seu entendimento sobre a liberdade de propaganda, sendo que tal contribui para “o cabal esclarecimento dos cidadãos e dos órgãos e agentes da administração”, mas indica que “fora dos períodos eleitorais, não detém competência para intervir no processo”.Recorde-se que o cartaz faz parte de um conjunto de três que foram erguidos em Lisboa, Loures e Oeiras, durante a Jornada Mundial da juventude (JMJ), e pagos por um grupo de cerca de 300 pessoas que se juntou num ‘crowdfunding’, para “lembrar” e “dar voz” às vítimas de abusos sexuais no seio da Igreja Católica Portuguesa.
A ideia do movimento “This is our memorial” (“Este é o nosso memorial”) nasceu no Twitter e os promotores fizeram uma recolha de fundos que permitiu a colocação dos cartazes. A iniciativa surgiu nas redes sociais antes da JMJ, que se realizou em locais dos três municípios de 01 a 06 de agosto.
“Luto pela liberdade de expressão das +4.800 vítimas, por um memorial que erguemos para que ninguém se esqueça delas. Não esquecemos”, disse uma das promotoras, Telma Tavares.
A Associação Ateísta Portuguesa considerou que a remoção do cartaz foi um ato de censura e de subserviência do executivo à Igreja Católica, alegando que o problema “nunca foi a estrutura ou a sua legalidade, mas a mensagem contida no cartaz”, o que o município negou.
Perante críticas à sua atuação, a Câmara de Oeiras mostrou-se disponível para recolocar o cartaz: os promotores apresentaram à autarquia um pedido formal, que foi autorizado, e o cartaz acabou por ser recolocado numa estrutura da autarquia perto daquela onde estava inicialmente.
Em novembro de 2021, mais de duas centenas de católicos defenderam que a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) deveria “tomar a iniciativa de organizar uma investigação independente sobre os crimes de abuso sexual na Igreja”.
Poucos dias depois, o pedopsiquiatra Pedro Strecht era nomeado pela CEP como coordenador da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos de Menores na Igreja.
Os testemunhos referem-se a casos ocorridos entre 1950 e 2022, o espaço temporal abrangido pelo trabalho da comissão.
No relatório, a comissão alertou que os dados recolhidos nos arquivos eclesiásticos sobre a incidência dos abusos sexuais “devem ser entendidos como a ‘ponta do iceberg'” deste fenómeno. Na sequência destes resultados, algumas dioceses afastaram cautelarmente sacerdotes do ministério.
* Pedro Zagacho Goncalves - 9 Ago 2023
*Com Lusa