3.8.23

OPINIÃO: O pai e a barra de ferro

Sou contra a violência, não acredito na força, a não ser em questões de sobrevivência e de liberdade. Por exemplo, contra ditadores nazis e fascistas que levantam as garras; também contra ditadores repelentes que se disfarçam de antinazis, como Vladimir Putin, cavando na memória distorcida de um genocida, Estaline. Aí temos de nos levantar, defender, atacar.
Isso é uma coisa, outra é o pai do João e a sua barra de ferro. Deu com uma barra nas pernas do João e agora estava a ser julgado por violência doméstica. Atenção, o pai do João admite que bateu, mas que só usou o corpo, os pés. Não foi uma palmada no rabo, mas também não foi com uma barra de ferro.
Estive numa sessão no tribunal, sentindo na espinha o frio da indecisão: ele fez mal mas, por outro lado, fê-lo, por assim dizer, por bem, mas, por outro lado nunca o poderia fazer, e, por outro lado, se não fizesse nada, fazia o quê?, e, já agora, tendo-o feito, o que é que ganhou com isso?
Será que o pai do João perderá um dia, ou já perdeu, o filho?
Há pelo menos uma resposta cristalina, como se diz nos tribunais: não se bate com uma barra de ferro num adolescente de 15 anos, é crime. Mas a principal testemunha do dia, o director da escola do João, explicara algumas circunstâncias. O pai ouvia tudo no banco e parecia concordar: eu não devia, não devia ter feito, dizia a cabeça dele.
- Ele estava a queixar-se na aula de ginástica, foi precisamente por isso que o mandámos para o hospital. Tinha dores, disse o director da escola.
- Não viu marcas, não viu o rapaz?, perguntou a procuradora.
- Vi, mas não dava para perceber as marcas.
Mas estavam lá.
- Apurou se havia algum contexto prévio a estas lesões?
- Aquilo que me contaram é que o pai o tinha mandado fazer umas flexões e ele pôs-se a rir e foi assim que foi atingido.
Visto por um médico, com lesões confirmadas nos glúteos e nas coxas, João foi retirado ao pai e passou para a Santa Casa da Misericórdia. João não falou durante o julgamento. A procuradora do Ministério Público disse que teria que se “avaliar o poder-dever de educação e a ofensa, a linha entre as duas.” O menor, na altura com 15 anos, uma idade frágil, e “um contexto em que havia uma questão educativa em causa”. Os castigos corporais “devem ser banidos e existe uma linha que, quando ultrapassada, já deixa de estar ao abrigo do direito-dever de educação. Foi ultrapassado o limite”. No entanto, a procuradora entendeu “não se ter conseguido provar que foi com uma barra de ferro. A ofensa é apenas simples, não agravada.” A advogada do pai do João disse que este trabalha, não tem antecedentes e que o João voltou a viver em casa.
- Até porque o pai já sabe que não pode atingir o menor e está limitado. Interiorizou a norma, há pouco risco de reincidência. A conduta do filho menor de desrespeito, desobedecendo-lhe... Ele agiu com a intenção de o corrigir...
Lá fora, no corredor, João olhava papéis. Estava sério. No dia em que o pai lhe bateu, acabara de descobrir que João falsificara os documentos escolares, os testes, os avisos para casa, etc., imitando a assinatura do pai. Quando o pai o pôs de castigo a fazer flexões, teve um ataque de riso. Depois já sabemos. Aproximei-me:
- Ele enganou-o, falsificou a sua assinatura, mas já tinham acontecido outras coisas...?, comecei.
- Este grupo em que se meteu... Os amigos, só fazem disparates. Sabe, o meu filho entrou em fora de controlo.
- Mas continua em fora de controlo?
- Não, não, agora está bem.
- Ainda anda no mesmo grupo de amigos?
- Não, não.
Depois vi a cara do João, uns olhos de silêncio, uma escuridão e - espero estar enganado - este caso vai ser longo, pode não acabar.
* Rui Cardoso Martins - Jornal de Notícias -30.7.2023