7.7.24

OPINIÃO: A música que ajuda a ser gente

Era demasiado miúda para entender a profundidade da música de Fausto quando ele me entrou em casa, pelas mãos do meu tio filósofo, mas ao longo dos anos foi ocupando um lugar de destaque ao lado do sempre mais citado Zeca Afonso. Fausto tinha a portugalidade nas suas composições, mas juntou mar às raízes e ensinou-nos que vamos ganhando densidade de alma à medida que corremos mundos a navegar. Somos o lugar de onde vimos, ao qual somamos sucessivas camadas dos lugares que cruzamos e nos cruzam.
Esse cruzamento deve ser convocado na semana decisiva de França, em que se verá o resultado da tentativa de barragem da extrema-direita e o resultado das desistências de candidatos, para evitar a dispersão de votos. Nas análises às perspetivas eleitorais para a segunda volta de hoje, os jornais multiplicam-se em tentativas de identificar comportamentos: por idades, por géneros, por círculos mais rurais ou urbanos. As conclusões são difusas porque não há geografias de voto, mas geometrias variáveis em que entram em campo múltiplas explicações.
Nos últimos meses não têm faltado teorias sobre a atração pelos partidos de extrema-direita, algumas centradas na crise da habitação e na associação entre insegurança e imigração, outras explorando os efeitos dos confinamentos da pandemia e um eventual efeito do crescente isolamento e individualismo. Qualquer fenómeno social e político é multifatorial, mas se há lição que os últimos tempos nos têm trazido é que as simplificações são perigosas e não devemos ter a pretensão de querer explicar o mundo à luz de lógicas binárias ou redutoras.
Os direitos são incontestavelmente conquistas permanentes. A participação cívica e a literacia política precisam de um investimento constante. E dependem largamente da nossa capacidade de olharmos o outro e de sairmos do nosso lugar, para mudarmos de perspetiva. A cultura consegue tantas vezes focar-nos o olhar com uma sabedoria que nenhum protagonista político alcança. A música de Fausto leva-nos para esse ambiente colorido em que cabemos todos, sem muros nem intolerância. Há música que nos ajuda mesmo a ser mais gente.
* Inês Cardoso - Jornal de Notícias - 07 julho, 2024