11.7.24

TEXTOS de autores nisenses - Álvaro Pires

 
CRÓNICA: O menino que queria ser mais pobre (ainda) - Álvaro Pires *
1ª parte
Hoje houve novamente “tourada” cá em casa.
Passei pela praça – dos ciganos - e comprei mais meia dúzia de camisas de verão. Sim porque eles só vendem em grandes quantidades. As meias sãoàs dúzias, as cuecas são às dúzias e as calças às dúzias. Depois de fazer o meu choradinho lá me venderam meia dúzia de camisas. Em “popelina”, aos quadrados, com várias cores e daquelas que eu gosto.
Ainda fui à socapa arrumá-las no guarda fato, onde só tenho camisas desse feitio e com esse desenho. De verão e de inverno. Não uso outras. Nem quero.
O “olho de lince”, cá da casa, como dizem os filhos, apanhou-me de volta das minhas arrumações e toca de fazer a “tourada” do costume. Nunca compreendeu porque eu só quero usar camisas com aquele desenho. Espero que depois de ler estas palavras, compreenda. Se não compreender, paciência, eu continuo a comprar e a usar as camisas que quero e as “touradas” hão-de continuar... OLÉ!!
2ª parte
E o menino com a sua bolsa feita de pano pendurada ao ombro, lá ia a caminho da escola.
Com frio e com medo, porque o Sr. Professor gostava de arrear nos meninos. A porrada que ele dava fazia mesmo doer. Por outro lado quem levava pancada ainda era gozado pelos outros meninos, e era uma vergonha. As reguadas às dúzias (como os artigos que os ciganos vendem) deixavam as mãos vermelhas ou as chapadas dadas com tanta intensidade que até os ouvidos ficavam a zumbir. Enfim.
A sua escola (hoje moradia) era bonita. Rectangular com duas portas de madeira altas à entrada. Amplas janelas também de madeira e de vidro com boa visibilidade para o exterior.
À sua volta um muro, mas baixo. O espaço entre as paredes da escola e o muro servia de recreio e era simultaneamente onde os meninos tinham os seus canteiros. Encostados à parede da escola, cada menino semeava no seu canteiro, o feijão, o milho, o grão e outros produtos hortícolas. Como eram eles que tinha cuidar da sua pequena horta, todos tinham a ambição em ter sempre o melhor canteiro.
Era Inverno. O frio apertava. A água nas poças já se transformava em caramelos. Nas mitras dos meninos já apareciam uns farrapinhos de geada. As frieiras nas mãos, orelhas e nos pés (alguns iam descalços para a escola), começavam a aparecer.
Naquele dia de escola apareceram uns Senhores e Senhoras. Depois de falarem com o Sr. Professor começaram a distribuir umas camisas de flanela aos quadrados, de várias cores. Mas só alguns tiveram direito a levar para casa uma camisa. Por aquilo que explicarem aos meninos, só os mais pobres levavam uma camisa.
O menino nesse dia voltou para casa triste. Também queria uma camisa. A sua bolsa de pano no regresso da escola pesava mais.
Trazia, juntamente com as coisas da escola, os seus sapatos. Estava bastante frio, mas ele veio descalço, como os mais pobres. O menino queria ser mais pobre (ainda). E tu José da Cruz da Portela também gostas de camisas de flanela aos quadrados?
Peniche 26/6/2010
* Escritor Santanense
** Texto publicado em "O Montesinho" nº 13 - Julho 2010