11.7.24

VIVÁ MÚSICA! Em memória de Armando Carvalhêda (1950-2024)

 
Fazer rádio, para mim, é dar corpo a uma paixão que me acompanha...
                                    ARMANDO CARVALHÊDA
Morreu, aos 73 anos de idade, Armando Carvalhêda. Um dos nomes maiores da rádio portuguesa, apresentou entre 1996 e 2020 o "Viva a Música": um dos programas de maior duração na Antena 1, dedicado em exclusivo à música cantada em português (e, por vezes, em mirandês e em crioulo cabo-verdiano) e instrumental, ao vivo e em directo, com produção de Ana Sofia Carvalhêda.
Nascido em Lisboa, a 30 de Dezembro de 1950, frequentou a escola primária e o liceu em Setúbal, onde viveu até aos dezoito anos. Fez as suas primeiras experiências radiofónicas em 1967, tendo ajudado a fundar a primeira estação pirata em Portugal (Rádio Clube de Alcácer do Sal). Conforme recorda o historiador de rádio Rogério Santos, esta rádio de onda média começou com a construção de um emissor rudimentar – a que se juntavam apenas antena, um gravador, dois gira-discos e um microfone – e terminou devido a uma entrevista a José Afonso, que "incomodou o poder".
Dizia que fazer rádio não era profissão, era paixão: era a sua vida desde 1972, ano em que principia a sua carreira, ainda durante o serviço militar obrigatório na Guiné-Bissau. Lá fez testes e foi convocado para um programa das Forças Armadas, iniciando assim um frutuoso percurso profissional.
De regresso a Portugal, fez de novo testes para a Emissora Nacional. Começou a trabalhar na delegação regional de Coimbra da rádio do Estado, em Outubro de 1973; já na década de 1980, assume a realização de vários programas na Antena 1, além de integrar a equipa de reportagem da estação no Rali de Portugal até aos anos 90. De todos os projectos que teve em mãos, incluindo a rubrica de música tradicional "Cantos da Casa", o "Viva a Música" foi o programa de uma vida – de missão. Era o palco da rádio, como o designava. Quando o programa começou em 1996, a música portuguesa passava por um período difícil, de pouca aceitação e divulgação escassa. Em temporadas de concertos de periodicidade semanal, à quinta-feira, de tarde, ao vivo e em directo, foram quase 25 anos de um dos mais históricos programas da rádio pública, onde como divulgador quis ajudar à afirmação da música nacional e dar voz aos seus compositores, autores e intérpretes.
A rádio e a guerra cruzaram-se de novo na sua vida em 1995, quando produziu e apresentou o concerto/emissão "Juntos na Distância", que a Antena 1 transmitiu desde a Bósnia-Herzegovina, durante a guerra da ex-Jugoslávia, com o objectivo de dar ânimo aos soldados portugueses destacados na gestão do conflito.
Na década de 1980, esteve também ligado à criação e ao lançamento do projecto de solidariedade "Pirilampo Mágico", que a Antena 1, desde 1987, tem desenvolvido em parceria com a FENACERCI. Deu voz a Cassete Amaral, a Deusébio, a Luís Fígado e a outras personagens da série de marionetas "Contra-Informação" (RTP1), que caricaturava figuras públicas da sociedade portuguesa. [texto ligeiramente adaptado / fonte: https://antena1.rtp.pt/obituarios/armando-carvalheda-1950-2024/]
Uma das funções mais nobres – e indispensáveis – de qualquer serviço público de radiodifusão é a divulgação (conveniente e consistente) da melhor produção musical do respectivo país, mormente a mais bem enquadrada na matriz cultural desse mesmo Estado. Armando Carvalhêda foi, no canal generalista da rádio pública portuguesa, a RDP-Antena 1, um dos que melhor entendeu tal paradigma e que, de forma apaixonada e empenhada, o pôs em prática ao longo do seu percurso profissional, sobretudo no programa "Viva a Música" (iniciado em 1996) [>> RTP-Palco], na rubrica "Cantos da Casa" (a partir de Setembro de 2006) [>> RTP-Play], e no programa alargado homónimo dominical (de Outubro de 2015 em diante) [>> RTP-Play]. Todos terminaram em finais de Dezembro de 2020, quando o distinto realizador foi empurrado para a reforma, a pretexto de ter atingido a idade de 70 anos, porque Rui Pêgo, o então director de programas da Antena 1, Gonçalo Reis, presidente do conselho de administração da R.T.P., e Hugo Figueiredo, vogal do mesmo conselho com o pelouro dos conteúdos, considerando (erroneamente) que Armando Carvalhêda não representava uma verdadeira mais-valia para o serviço público de rádio, prescindiram da sua colaboração, mesmo a título gracioso, conforme o emérito radialista teve o ensejo de afirmar, com justificada mágoa, a 29 de Abril de 2022, na entrevista que concedeu ao seu colega Paulo Rocha [>> RTP-Play]. Aliás, a desconsideração e o desrespeito pelo notável profissional já se manifestara anteriormente, e com especial acuidade no Verão de 2015 quando Rui Pêgo quis acabar com a rubrica "Cantos da Casa", intento que só não levou a cabo porque se gerou um amplo movimento de contestação, no qual o escrevente destas linhas teve a honra de se incluir lançando a Petição a favor da reposição da rubrica "Cantos da Casa" (Antena 1). A rubrica regressou à antena no mês de Outubro mas com uma única transmissão por volta das 05h:55 da madrugada, o que denota bem a má-vontade de Rui Pêgo e a inqualificável falta de consideração que nutria pelo trabalho que Armando Carvalhêda tão briosa e dedicadamente realizava...
As larguíssimas dezenas de artistas e grupos dos mais variados géneros e estilos que, ao longo de quase um quarto de século, actuaram no palco da rádio [primeiro no Estúdio A do n.º 2 da Rua do Quelhas, escassos anos mais tarde no auditório do novo edifício da RDP às Amoreiras (antigas instalações da Philips), depois no pequeno Teatro Dom Luiz Filipe/Teatro da Luz (ao Colégio Militar) e, finalmente, no Estúdio 3 da sede da Rádio e Televisão de Portugal (em Cabo Ruivo)], e aqueles mais arreigados à tradição oral a quem foi dada a oportunidade de entrarem nos "Cantos da Casa", assim como os numerosos e fiéis rádio-ouvintes, esses tiveram razões de sobejo para se queixarem da enorme perda que constituiu a saída (forçada) do Sr. Armando da estação pública e, agora, que a Funesta Segadeira o subtraiu ao número dos vivos, bem podem lamentar-se por jamais ser possível contarem com o seu afável e proveitoso convívio. Possível ainda é – valha-nos isso – revisitar parte do acervo dos seus programas, na plataforma RTP-Play [links acima indicados]. E grafamos 'parte' porque faltam os anteriores a Outubro de 2011, pelo que importa que sejam disponibilizados. A fruição do valioso legado de Armando Carvalhêda é, doravante, a melhor maneira de se lhe prestar homenagem e de se lhe manifestar gratidão pelo muito (tanto) que fez em prol da boa música portuguesa, a começar pelos seus criadores e intérpretes, e a terminar no público fruidor. Outra forma – nada despicienda – de honrar a sua memória é existir na grelha da Antena 1 um programa de música ao vivo, de figurino similar ao do "Viva a Música", e a programação musical ('playlist' incluída) estar verdadeiramente ao serviço da melhor música portuguesa (cantada na língua de Camões e instrumental), coisa que actualmente não se verifica.
Este preito de homenagem a Armando Carvalhêda, apesar de não ter pretensões de exaustividade, pecaria por omissão (imperdoável) se não contemplasse dois espécimes musicais que tiveram o bendito condão de ficar associados ao saudoso realizador da nossa rádio: "Quadrilha (e vivá música)", integrante do álbum "Terreiro das Bruxas" (1990), do grupo Vai de Roda, da qual um trecho serviu de indicativo aos "Cantos da Casa" (rubrica e programa alargado), e "Avejão", canção concebida por Carlos Guerreiro para os seus Gaiteiros de Lisboa (álbum "Avis Rara", publicado em 2012), em cuja secção final surge Armando Carvalhêda a fazer de repórter da parada das aves rapaces.
Até sempre, Sr. Armando, e muito obrigado pelo imenso e intenso amor que sempre devotou à boa música portuguesa!