Morreu esta segunda-feira o cantor e compositor que marcou a música popular portuguesa no último meio século.
Nascido a bordo do navio Pátria numa viagem entre Portugal e Angola, Fausto era um dos últimos grandes cantautores do movimento associativo em tempo de ditadura, ao lado de nomes como Zeca Afonso, Adriano Correia de Oliveira, José Mário Branco e Manuel Freire. O seu primeiro EP data de 1969, com o nome “Fausto”, incluía a música “Chora, Amigo, Chora” que lhe valeu nesse ano o prémio Revelação da Rádio Renascença.
Filho de pais beirões, de Trancoso, Fausto viveu no Huambo até aos 18 anos e veio para Lisboa, onde se licenciou em Ciências Políticas no antigo Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina, integrando a direção da Associação de Estudantes e participando nas Reuniões Inter-Associações. Após a Revolução foi em sua casa que em maio de 1974 se fundou o Grupo de Acção Cultural - Vozes na Luta (GAC), com José Mário Branco, Tino Flores e Afonso Dias -, que ao longo de meses promoveu dezenas de sessões de canto por todo o país, tendo Fausto abandonado o projeto em setembro. Nesse período lançou “Pró que Der e Vier” (1974) e “Beco sem Saída” (1975)
Em 1978 colaborou na banda sonora do filme A Confederação com José Mário Branco e Sérgio Godinho, com quem viria a juntar-se em palco 31 anos depois no espetáculo “Três Cantos ao Vivo”, gravado em disco.
Ao longo de cinco décadas de carreira, Fausto gravou 12 discos, dez dos quais de originais, destacando-se a trilogia “Lusitana Diáspora” sobre a História portuguesa da expansão, iniciada com o duplo álbum “Por este Rio Acima” em 1982, baseado na Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, e prosseguida com “Crónicas da Terra Ardente” em 1994 e “Em Busca das Montanhas Azuis” em 2011, todos vencedores de vários prémios e considerados dos discos mais importantes da música portuguesa.
Diz que começou a trilogia “porque me divertia imenso ler Fernão Mendes Pinto, era o meu livro de cabeceira”, mas também porque “me cansei das canções de intervenção, já não faziam sentido nenhum, já ninguém as queria ouvir, estávamos a falar para o boneco”.
Tendo as obras mais aclamadas da sua carreira o tema das viagens, Fausto assumia que não gostava de viajar. “Eu viajo de cabeça. Viajo à força de fazer concertos, mas sem gosto. Não me agrada o avião. Não tenho nenhum fascínio pela viagem. Prefiro ler o que os outros dizem e viajar por eles”, contava em entrevista a Ana Margarida Carvalho na Visão.
No último capítulo da trilogia, diz ter procurado explorar a ideia de que “muita gente viajou pelo sonho, pela vontade de descoberta, pelo contacto com outros povos e outras culturas”.
Na carreira de Fausto, os concertos eram sempre uma ocasião especial, pela sua raridade. Não apreciava as luzes da ribalta do showbiz, mas não abdicava de intervir cívica e politicamente, nomeadamente apoiando as campanhas presidenciais de Otelo e por várias vezes as candidaturas do Bloco de Esquerda, como voltou a suceder nas legislativas deste ano.
Dizia ver o mundo sempre “com um certo otimismo, ainda que constate os seus recuos”. E que “nós vivemos um período do capitalismo financeiro mais barato que há, mas enquanto vejo os especuladores marchando, também se veem manifestações contra essa mesma especulação, por toda a Europa”.
Na mesma entrevista referiu que “uma pessoa da minha geração que tivesse pensado que, com o 25 de Abril, se alterariam profundamente as coisas, está desiludida, sabe perfeitamente que o 25 de Abril não conseguiu atingir os seus objectivos. E que até houve uma regressão”. Mas rejeitava que o regresso da canção de protesto fosse uma saída “porque é absolutamente reabsorvido pelo sistema”.
De acordo com a família, na terça-feira as cerimónias fúnebres serão na Voz do Operário entre as 18:00 e as 23:00. O funeral, na quarta-feira, será reservado à família
Tristeza e pesar
Ao longo do dia sucederam-se as mensagens de tristeza e pesar pela morte de Fausto. Em nota à imprensa, o Bloco de Esquerda destaca que além da intervenção musical, "Fausto Bordalo Dias empenhou-se em diversas lutas. Assumiu a defesa da escola pública, opôs-se ao nuclear, criticou a humilhação pelas praxes académicas, lutou pela memória da resistência ao fascismo, defendeu a despenalização da morte assistida" e que "desde 1999, apoiou as candidaturas do Bloco de Esquerda em diversas eleições, incluindo nas legislativas de março deste ano".
No site da Presidência, Marcelo Rebelo de Sousa afirma que "recebeu com tristeza a notícia da morte de Fausto Bordalo Dias, que ao longo de décadas deixou um legado musical que se confunde com a própria história de Portugal". Acrescenta que "Fausto pertencia a uma constelação de músicos que traduziu para as canções de intervenção o sentimento do povo português, e é por isso inevitável associar o nome de Fausto aos nomes maiores da música portuguesa, como José Afonso, José Mário Branco ou Sérgio Godinho".
Em declarações à agência Lusa, Sérgio Godinho afirmou que Fausto “era um grande criador, intérprete, criador de letras e músicas e criou um universo próprio, muito pessoal e muito personalizado. A gente consegue dizer aquela canção é do Fausto porque de facto ele tinha um carimbo”. Sérgio Godinho recordou os tempos em que privou com o músico a seguir à Revolução e o momento que os reuniu em 2009 em Lisboa e Porto com José Mário Branco. “Havia uma intensidade ali muito particular, porque eram os nossos três universos a cruzarem-se”.
De Angola, o jornalista Viriato Teles lamentou a morte do velho amigo, sublinhando que “o Fausto tem uma dimensão ética e estética que é incomparável, que mais nenhum músico se calhar tem com todo o respeito pelos outros”. “A música dele, que me tem feito companhia frequentemente aqui em Angola, transformou a música portuguesa. Ou melhor: a obra dele transformou a música portuguesa”, disse o jornalista, frisando a noção de "obra".
in www.esquerda.net 01 de julho 2024