29.1.23

OPINIÃO: Revoluções fofinhas

Numa era de polarização e agressividade à solta nas redes sociais, tem vindo a crescer uma vaga que defende ser legítimo o uso da força e a infração de disposições legais quando estão em causa discriminações graves ou um alegado bem maior que justifica eventuais excessos de ação.
O argumento começou por ser usado em relação à discriminação racial, mais recentemente foi aplicado na defesa dos jovens que promovem ocupações em nome da defesa ambiental ou, por estes dias, em relação ao incidente "transfake" e a forma como essa ação humilhou um ator em palco.
São essencialmente dois os argumentos utilizados em defesa de ações mais musculadas. Um é o de que a violência que certas franjas da sociedade sofrem não é comparável com as perturbações que na sua luta possam causar (no incidente do Teatro São Luiz, considera-se até ofensivo que o ator afastado do palco, André Patrício, se sinta violentado, dada a desproporcionalidade entre o que sentiu e a violência vivida diariamente por alguém trans). Um segundo argumento é de que não há revoluções mansas ou fofinhas, sendo por vezes o uso da força necessário para provocar a mudança.
Apesar da complexidade de casos concretos, que dão só por si pano para mangas na reflexão, inquieta-me que se considere legítima a violência em certas lutas. Quais são as causas boas e quem as define? Se entendemos que há fins que justificam pisar leis e valores pelos quais tantos batalharam, precisamente para que houvesse um espaço de liberdade dentro do qual se reivindicassem direitos, quais os riscos para a nossa coesão social e democrática? E qual o papel do outro, quando entendemos que a empatia se aplica a quem sofre, mas não a quem é atropelado durante as ações pela mudança?
Admito que muitas revoluções que nos fundaram civilizacionalmente exigiram violência. Mas não faltam exemplos de intervenção, sobretudo no palco e noutras manifestações culturais, que provocaram agitação e mudança de forma totalmente pacífica. Mexendo em consciências, criando conhecimento, construindo perspetivas novas, abrindo janelas onde havia muros. A lógica divisionista e cheia de fraturas não me parece a melhor para atingir objetivos que deveriam eliminar barreiras em vez de colocar uns contra outros. E não se diga que apoiar uma causa pressupõe aceitar todas as suas formas de luta, porque não há caminhos únicos para atingir o mesmo fim. Questionar o ódio parece-me, aliás, cada vez mais revolucionário.
* Inês Cardoso in Jornal de Notícias - 29.1.2023