28.1.23

Opinião: O singelo altar

Segundo a Constituição da República, Portugal é um país laico. Logo à partida, é ilegal pagar seja o que for por motivos religiosos. O argumento de que é um país maioritariamente católico – e eu sou católica – para mim não colhe: o Estado é laico, há milhões de agnósticos e de ateus, bem como outras minorias ou crenças religiosas que merecem todo o nosso respeito. Todos eles contribuintes. E se o Estado gasta uma quantia com uma Igreja, por uma questão de igualdade e equidade, também deverá gastar com as outras, e em igual medida.
A Jornada Mundial da Juventude de Madrid 2011, aconteceu sem dinheiro dos contribuintes. Custou 50 milhões, 70 por cento dos quais suportado pelos peregrinos e os restantes 30 por cento foram doações feitas por empresas, a maior parte dos patrocinadores integrava a fundação Madrid Vivo. Isto porque os espanhóis levam a sério o cumprimento estrito da Constituição e da Lei, daí não utilizarem o dinheiro dos contribuintes para esses efeitos. E não é, seguramente, por esse país ser mais pobre do que o nosso.
Lisboa é a cidade escolhida para a Jornada Mundial da Juventude 2023, que irá decorrer de 1 a 6 de agosto. Tinha sido apresentada candidatura e sabia-se – desde 2019 – que era a cidade escolhida para esse evento religioso. Contudo, esperou-se, até agora, para avançar com as infraestruturas. Estaria o ajuste directo no horizonte? Ou foi simplesmente o hábito português de deixar para mais tarde o planeamento? Ou talvez uma conjugação das duas.  Para já não falar das derrapagens orçamentais que se prevêem e conforme é habitual no gasto público. Por outro lado, existiam no país infraestruturas eficientes e capazes para que o evento se realizasse sem gastar muitos tostões – o Santuário de Fátima ou Aeroporto de Beja.
O que é certo é que a notícia caiu como uma bomba, num país empobrecido fala-se num “investimento” no Parque Tejo de 35 milhões de euros, incluindo o famoso altar-palco onde o Papa Francisco irá celebrar a missa e que ficará pela módica quantia de 6 milhões. A leviandade com que se fala nestes valores, ao mesmo tempo que se nota o desinvestimento em tantos outros sectores, é pornográfica.
Num país que recebe, há dezenas de anos, dinheiro da União Europeia e continua no carro vassoura, enquanto aqueles que recebem, há meia dúzia de anos, já estão a léguas à nossa frente. Em que os problemas se agravaram (como habitação e sem abrigo) e comunica-se a construção de um palco assim, sem se saber se havia melhor opção. Mas quanto maior a transacção maior a comissão.
Eu sei o retorno que estes eventos geram, mas, em boa verdade, não é palpável para a maioria dos portugueses. De que modo é que outros eventos foram efetivamente rentáveis? O Europeu de Futebol gerou elefantes brancos por esse país fora e que tiveram um custo de milhares de milhões. Dinheiro gasto em fantasias provincianas em que empresários e políticos encheram os bolsos. O único que ficou mais pobre foi o contribuinte. E ainda sobre o “muito lucro”, a maior parte da rapaziada que participa, vem de mochila às costas, não terá capacidade financeira para gerar os dividendos que nos querem convencer.
A exibição verificada com a Jornada Mundial da Juventude não se enquadra nos princípios da Santa Igreja. A ostentação desmedida, o esquecer completamente que o dinheiro despendido permitia matar a fome e apoiar pessoas em dificuldades, bem como o fausto que quem está a organizar o evento preconiza não fazem parte da cartilha da doutrina cristã. Assim sendo, descartam de uma só penada todos os princípios que dizem professar. O singelo altar que Elias do Velho Testamento reconstruiu, agradou, certamente, mais ao Senhor Deus.
* Marília Alves in penacovactual.sapo.pt - 27.1.2023

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