22.1.23

OPINIÃO: O elogio da panfletagem

 
Cada local exige um hábito, uma técnica, um sacrifício diferente no momento de panfletar ― de distribuir panfletos, boletins, comunicados. Tal como cada momento da vida política: uma greve, uma campanha eleitoral, um cinzento dia aleatório.
O sol nasce lá ao fundo, sobre o Mar de Palha, e temos como companhia a «Poderosa» e a «Vigorosa», duas gruas-lancha, de manhã sempre atracadas no terminal de contentores de Santa Apolónia, em Lisboa. Um a um, os estivadores entram ao serviço, passando a cancela gradeada, que roda pesada sobre eles. Raras vezes são mais de vinte ou trinta em cada um dos terminais. Recebem os panfletos na mão, surpreendidos, mas reconhecidos. São 7h50 da manhã.
À hora do almoço, troca o turno na Autoeuropa: aí, é uma torrente de gente, diversa sob todos aspetos, que quase nos atropela, retirando-nos da mão os panfletos. Panfletar é parecido com isso também à porta da Visteon, na Volta da Pedra, em Setúbal; ou na troca de turno na OGMA, em Alverca ― ainda que nenhuma se compare à corrente humana que a fábrica de Palmela expele a horas certas.
Cada local exige a sua arte e a sua tática na distribuição de propaganda. No aeroporto de Lisboa, a maioria dos trabalhadores entra de carro e, se estivermos de madrugada, num horário quase sem transportes públicos, junto à cancela que se levanta para entrem nas instalações, os vidros do carro baixam-se para receber a palavra da luta. Já na central dos CTT, em Cabo-Ruivo, um grande centro logístico, aglomeram-se à porta, e, antes da meia-noite, enquanto uns pegam e outros «depesgam» ao trabalho, formam-se grupos que conversam, os efetivos de um lado, os «contratados» do outro.
Cenários diversos, mas com parecenças, vemos país fora, na EFACEC, na Leça do Balio, na Bosch em Braga, na Dan Cake em Coimbra… em milhares de grandes e médios locais de trabalho: fábricas, centros logísticos, terminais de transportes. Há um mundo secreto do trabalho que não dorme e que só se torna visível em momentos de luta: quando à porta da fábrica ou do armazém as câmaras filmam um piquete de greve ou a concentração de operárias que impedem que o patrão retire as máquinas da fábrica falida. A panfletagem nesses lugares é, para começar, um ato de visibilização política ― desde logo para quem milita. Trata-se de romper um cerco.
Outra coisa ainda é distribuir panfletos, em interfaces de transportes públicos, a multidões apressadas que voltam a casa ― aí a massa proletária é como o rio de Heráclito, diferente de cada vez que nela mergulhamos. Os mercados têm outra dinâmica e outras gentes (ou as mesmas, mas noutras circunstâncias). E o mesmo é verdade para as faculdades ― que diferem entre si, gerando receções distintas, exigindo abordagens diversas. Cada local exige um hábito, uma técnica, um sacrifício diferente no momento de panfletar ― de distribuir panfletos, boletins, comunicados. Tal como cada momento da vida política: uma greve, uma campanha eleitoral, um cinzento dia aleatório.
Em cada um destes momentos e locais auscultam-se diferentes aspirações da nossa classe. Afere-se a receção, as conversas, a frieza e ― por vezes ― o desprezo. Tudo isso ensina quem quer aprender, forja quem milita. Em cada um se mede a temperatura das águas políticas. As distribuições podem e devem ser um batismo de fogo, um ginásio para manter a forma, um artesanato da ação militante, um laboratório onde se testam ideias.
Admito que nem todos o sintam, mas o prazer que disso resulta pode ser revigorante.
E quando, em vez do panfleto genérico, distribuímos um boletim, redigido por quem está dentro dos locais de trabalho (ou por militantes que, não o estando, aí estabeleceram vínculos), tudo muda. O reconhecimento das denúncias que vêm de dentro impacta de outra forma quem, numa madrugada fria, recebe um A4 fotocopiado. Rapidamente, a entrega do papel gera uma conversa; por vezes despoleta um burburinho. Então, já não estamos a distribuir papelada: em golfadas, gente sai porta fora para recolher os papéis, que nos voam das mãos. Uma roda de conversa espontânea discute uma denúncia e já ensaia uma assembleia. Trocam-se contactos e, entredentes, combina-se um encontro no café à hora de saída. A luta já começou.
Por vezes demora meses, até anos, até ao dia em que da panfletagem começa a brotar a organização. Outras, é rápido. Nunca sabemos até tentar. E os «nãos» secos, de quem se recusa a aceitar os panfletos, ensinam quase tanto como o entusiasmo que deflagra o combate. Sobretudo quando verificamos que ambas as atitudes podem vir de uma mesma pessoa: quem ontem recusou as denúncias e as propostas, amanhã enuncia-as com um brilhozinho nos olhos, antecipando as palavras-de-ordem impressas, passadas de mão em mão.
Quem faz panfletagens regularmente conhece bem um fenómeno: numa correnteza de gente, quando alguém recusa um panfleto, é quase certo que o seguinte recusará também. E o seguinte, e o seguinte, numa longa cauda de negas. Somos seres sociais. O exemplo conta: para recusar, mas igualmente para aceitar a luta. A maré muda: não só a recusa, mas também o entusiasmo, a revolta e a confiança se propagam. As ideias contam, os momentos também. É também isso a política e por isso vale a pena o sacrifício de acordar cedo para, num qualquer subúrbio frio, entre gruas, contentores e paletes, passar a palavra, olhos nos olhos, sem ecrãs nem algoritmos. A panfletagem, como a luta, continua.
Janeiro, 2023 - Manuel Afonso