16.1.23

OPINIÃO: Arre conhe (Crónica de Fernando Alves na TSF)

A seis quilómetros de Alpalhão, levo duas horas de avanço em relação ao combinado. Decido fazer uma pausa em Gáfete para alinhavar duas ou três notas de apoio à conversa apalavrada com o veterinário aposentado José Caldeira Martins que se pôs a catar as mais criativas expressões de uma fala única, inconfundível, ainda praticada pelos alpalhoeiros. O resultado desse trabalho de campo é o livro, verdadeiramente admirável, "Alpalhão, palavras, falares e modos de dizer de uma vila do Alentejo". Mesmo agasalhado, dou comigo a bater castanholas, tão frio se apresenta o dia soalheiro. No café-restaurante Lagarteiro, apresenta-se-me, com aquele "arzinho de se rir" (modo que os alpalhoeiros têm de significar prazenteiro) o senhor Dinis que não me cobra a bica por me ter visto, há dias, na televisão à conversa com o grande Carolino Tapadejo, homem respeitado em todo o território avistável da serra de São Mamede até estas bandas.
Cuido de garantir que me será aceite o dinheiro do almoço, ficaria o jantar para os secretos da Regata, cumprida a função.
Nisto ouve-se uma buzina, pertechinhe. E a senhora da cozinha, grita lá de dentro: "Olha a padeira". O dia faz-se destes ciclos, está um tipo noutra mesa a raspar jogo, os de Alpalhão (em tudo, distintos dos de aqui, até nos ofícios antigos, sapateiros e carreteiros os de lá, calceteiros os de aqui, sendo de granito a pedra que aflora neste chão ainda de rebanho) diriam, deste talvez mais molengo de Gáfete, "aquil nã presta pr"a nada: é um comi-dorm coalqué", Noutros tempos alguma pedrada poderia servir para acelerar o vocábulo, por falar nisso diz-se que as pedreiras de granito vão arrebitar, agora sopra da cozinha do Lagarteiro um cheirinho talvez de ourégues (como os de acolá dizem do divino tempero), a senhora da cozinha sugere uma alhada de cação, não demora nada, "eu mando já fazer" , vem o senhor Dinis lá de fora com um ramo encorpado de poejos a escorrer frescura, acabados de apanhar na horta, nasceu em Alegrete mas está por aqui há quase meio século, há tantos anos quantos os que José Caldeira Martins levou a cuidar do gado nessas terras de Marvão e em redor, não tarda lhe perguntarei "o que é um aldrugas?", já aqui vão no caderninho três ou quatro dizeres para a entrada da conversa, coisa pouca, não que me tenha posto a fazer cerol até chegar a comida à mesa, mas porque sei que o arranque de uma conversa não deve cuidar senão dos temperos. As notas que tinha no caderno não eram mais do que o meu molho de poejos a escorrer frescura. E na manhã seguinte, calhando alpinar cedo, quase vi nascer o dia na Senhora da Redonda. Ali perto, estava um rebanho que, até uma das ovelhas mexer um pouco a cabeça, parecia congelado. Arre conhe.
* Fernando Alves - in tsf.pt -16/1/2023