O setor da Cultura vive uma crise humanitária. A frase é de Pedro Abrunhosa e tem três dias. A crise tem dez meses e não tem solução à vista.
Já nos terá acontecido a todos desatarmos a chorar pela morte de alguém que só conhecemos do palco ou das páginas dos livros ou de um qualquer monitor. Aconteceu-me com David Bowie (1947-20016), passei o dia inteiro a chorar, entrei numa rotunda contra a mão e só por milagre não fiquei logo ali. Não me aconteceu com Maradona (1960-2020), salvou-me o instinto rápido: "Não vais fazer figuras à frente de toda a gente", pensei. Aconteceu-me com Manuel Hermínio Monteiro (1952-2001), o reinventor da Assírio & Alvim e, para muitos, "o herói dos editores". Nunca me tinha acontecido com uma editora.
A Cotovia está ligada ao ventilador e vai morrer. O privilégio infinito de ler em português textos dramatúrgicos em que mais ninguém investiu acaba dentro de pouco mais de 72 horas. Acabam os ensaios que nos ajudaram a recentrar o olhar, acabam as descobertas de textos antigos, acaba a familiaridade com autores aos quais não teríamos chegado de outra forma, acabam aquelas edições de uma beleza tão rara no mercado nacional. Às 24 horas do dia 30 de novembro acaba o mundo inteiro que existe dentro daquela editora. Como não chorar?
Parece diletante esta tristeza no dia em que morreram mais 82 pessoas em Portugal de covid-19, o terceiro pior registo desde que a pandemia apareceu, e em que o Orçamento do Estado para 2021 foi aprovado numa daquelas sessões parlamentares de fazer corar uma pedra inanimada. A versão final da proposta do Governo socialista foi aprovada apenas com os votos... do Partido Socialista. Mas nem é isso que espanta. O que assarapanta é o nível da argumentação, os jogos de salão e a pastilha elástica em que se convertem comportamentos e convicções partidárias. Não se iliba ninguém.
Falou-se muito esta quarta-feira de manhã, durante o debate, do fim de geringonça, do fim do Governo, do fim antecipado da legislatura. Mas bastaria assistir a meia hora daquele palratório para perceber que o fim mais iminente é mesmo o da democracia. E também isso dá vontade de chorar. No caso da democracia, essa senhora cada vez mais mal tratada, como no caso de todos os outros nossos heróis, nunca se chora tanto o passado perdido como o futuro roubado.
É o futuro e não o passado que mais dói hoje na Cultura.
A Cultura está a passar fome. São tantas as pessoas que habitam dentro desta outra senhora, que o sistema nem nomes encontrou para elas, colocando-as automaticamente em terra de ninguém. A maioria, Governo incluído, continua a assobiar para o lado (nunca os cheques - são magros, mas nem que fossem gordos - poderão substituir o pensamento e sem pensamento não há soluções eficazes nem duradouras), as Fundações - repetiremos as vezes que for necessário os casos de Serralves e da Casa da Música - continuam a despedir à frente de toda a gente sem que gente alguma pareça verdadeiramente incomodar-se, os artistas hibernaram para dieta de duração incerta, as salas tombam uma a uma.Mas a Cultura é talvez a única senhora do mundo que sobreviveu a tudo, a regimes impróprios, a ditadores, a revoluções, a depressões. A maioria de nós deve-lhe mais do que pensa. Por isso, talvez seja altura de resgatar o repto que John F. Kennedy lançou aos americanos nos anos 60 do século passado e adaptá-lo à Cultura: Não perguntes o que pode a Cultura fazer por ti, pergunta o que podes tu fazer pela Cultura. Por quem depende dela.
Helena Teixeira da Silva - Jornal de Notícias - 26/11/202