20.11.20

JOÃO FRANCISCO LOPES: O Descobridor das "Coisas do Tempo dos Mouros"

João Francisco Lopes, não é um arqueólogo no sentido específico do termo. É como tantos de nós, um amante das coisas da sua terra e deste concelho da "Corte das Areias". Sente, talvez como poucos, o peso dos usos, dos costumes, da história e da tradição, deste espaço sentimental, único e original da terra transtagana. Goste-se ou não, do homem e do estilo; elogiem-se ou recriminem-se fidelidades políticas que, porventura, perfilhe, uma coisa é certa: a historiografia que sobre Nisa da segunda metade do século passado vier a ser feita, vai ter, forçosamente, de se lhe referir. A não ser que, como tantas coisas, se prefira a esponja do silêncio à verdade assumida."
Este pequeno texto escrevi-o há seis anos, para o livro "Coisas da Corte das Areias" de João Francisco Lopes, nisense, 84 anos, falecido no passado dia 8 de Novembro e um dos mais activos defensores do património cultural do concelho de Nisa.
Conhecia desde criança o senhor João Francisco, mas foi a partir do 25 de Abril e enquanto eleitos autárquicos que encetámos uma relação de amizade e colaboração, tendo por base o gosto pela cultura e património concelhio - o parente pobre do poder municipal - e as constantes acções de delapidação e roubos de que o mesmo era alvo, ainda na década de oitenta. Uma colaboração que se aprofundou através dos alertas e denúncias que publicávamos na imprensa regional, mormente nos jornais "O Pregão", "Fonte Nova" e "Diário do Alentejo". O João Francisco reportava essas situações através de contactos com pessoas de origem e profissões mais diversas, desde pastores, a trabalhadores rurais, agricultores, pedreiros, etc., que lhe falavam amiudadas vezes das coisas ou pedras do "tempo dos mouros". Esses contactos e descobertas de alguns "tesouros", aguçou-lhe a curiosidade de saber mais, quer através da leitura, quer de opiniões de pessoas mais qualificadas e de incursões no campo. O campo, aliás, era o laboratório de João Francisco e ainda antes de se interessar verdadeiramente pelo património arqueológico e histórico, a botânica e o conhecimento de plantas com propriedades teurapêuticas, preenchiam os seus tempos de lazer. Foi assim que o conheci, a falar das variedades do hipericão e de outras ervas com capacidades curativas, as "mézinhas caseiras", não tão "mézinhas" como se pensava. Esse gosto veio-lhe da leitura da revista "Natura", que assinava, dirigida pelo Dr.Indíveri Colucci, considerado o "pai" da medicina natural ou alternativa em Portugal. Não sendo médico, João Francisco ajudou muitas pessoas que se lhe dirigiam pedindo a ajuda ou informação sobre determinadas doenças e a forma de as combater, de modo natural.
Amante das coisas da sua terra, foi jogador e treinador do Sport Nisa e Benfica, dirigente de colectividades como a Sociedade Artística Nisense e fundador da Sociedade Musical Nisense, colectividade fundada em 1988,  da qual foi o primeiro presidente da direcção e dirigente durante 20 anos, associação que teve como génese o ressurgimento da Banda de Nisa, banda filarmónica com um passado brilhante e que os anos de emigração e guerra colonial quase fizeram fenecer. 
João Francisco Lopes foi um dos grandes obreiros e impulsionadores da refundação da Banda contando com o apoio do executivo municipal de 1979-1982 liderado pelo Dr. Carlos Bento Correia e tendo o Dr. José Manuel Basso como vereador do pelouro cultural. A Sociedade Musical Nisense constituiu-se como um dos pólos fundamentais da dinamização cultural do concelho, através dos vários grupos que formou, entre eles a Escola de Música, a Orquestra Ligeira, a Banda Filarmónica e durante algum tempo, o Grupo de Dança e o Grupo de Cantares Tradicionais.
Como eleito na Assembleia Municipal e membro do Conselho Municipal de Cultura e Património teve também uma acção dinâmica e profícua, apesar de, nessa qualidade e ainda em vida do Dr. José Fraústo Basso, se ter perdido a oportunidade de fazer reverter para o Município, o valioso espólio artístico e arqueológico que aquele ilustre nisense detinha e se dispunha a ceder, mediante a elaboração de um protocolo que, por razões que me escapam, nunca foi feito e apresentado. 
Esta e outras questões, como a promoção e apoio de uma obra, que considerei, a todos os títulos, "infeliz", como foi a instalação da chamada "Fonte das Lágrimas" - pouco tempo depois, demolida -, e a exposição pública e insegura, de elementos do património, alguns retirados dos locais de origem, em final de mandato e de ciclo autárquico (2001), sendo factor de divergência, não beliscaram a consideração e respeito que mantinha pelo João Francisco. 
Considerava-o um guardião do património e um elemento essencial para a sua preservação no concelho de Nisa. A colaboração que encetou, ainda em 1995, primeiro com o "Notícias de Nisa" e depois, em 1998, com o "Jornal de Nisa", constituiu um manancial de iniciativas e informações fundamentais para o conhecimento do território concelhio e do património num sentido mais lato e que englobava os caminhos rurais, ainda hoje tão desprezados pelos poderes autárquicos, os muros de pedra, a paisagem, os recursos hídricos, as vias históricas que atravessam o concelho, o património histórico e arqueológico, as tradições, a geologia, a botânica, etc.
Foi através da nossa acção conjunta que, em 1995, um executivo de freguesia, a do Espírito Santo, liderado por Joaquim Zacarias, levou a tribunal e venceu sem qualquer problema, a questão da usurpação de  um caminho público, no caso conhecido como o da "Barroca do Salgueiro". Situação que poderia e devia ter constituído um exemplo para outras acções semelhantes, levando os executivos de Junta e a própria Câmara a uma posição mais firme e coesa na defesa do território municipal, o que não tem acontecido até hoje. Lembro, outros exemplos, como o de uma Junta de Freguesia que queria alcatroar o caminho da Senhora da Graça até ao adro da ermida. Juntos, conseguimos sensibilizar "in extremis" o presidente e a obra foi feita com calçada de xisto. Outro caso em que nos empenhámos e conseguimos parar a "obra", foi o da plantação de eucaliptos no sítio denominado "A Lagoa" próximo de Chão da Velha. O alerta na hora ao presidente da Junta de S. Matias, João Ferrer e à Câmara, produziu efeitos imediatos. Estas e outras acções, o conhecimento do território por parte do João Francisco e a sensibilização que foi feita, "elegeram-no", naturalmente, como um dos principais interlocutores com a comunidade rural, com as pessoas que a ele se dirigiam, evitando a burocracia, fosse para comunicar um "achado", fosse para denunciar um atentado ou roubo patrimonial.
Não esqueço e relembro que João Francisco, um caminhante de caminhos e veredas, foi pioneiro e dinamizou a colaboração com as escolas, trazendo os professores, auxiliares e alunos para a rua, para o campo e para o conhecimento da história local, exemplos que ficaram bem patentes na realização dos passeios "Estrada da Ammaia / Caminhos de Santiago" ou no passeio de comboio com a colaboração da Nisa Viva dando a conhecer o Tejo, as estações ferroviárias, um pouco da geografia do concelho, para muitos a primeira vez que, simultaneamente, andaram de comboio e viram o Tejo.
A Inijovem, associação que dinamizou, entre outras inciativas pioneiras, os passeios pedestres no concelho, bem como os execuivos municipais que entre 2001 e 2013 criaram os percursos pedestres, muito devem a João Francisco Lopes, pela informação e conhecimento próprio que lhes disponibilizou, não só em termos físicos, presenciais, mas também históricos e documentais. 
Muito, muito mais, poderia falar sobre o Homem e a Obra. O João Francisco Lopes de quem tive o privilégio de ser amigo e que incentivei a escrever, deixando um legado precioso no livro "Nisa - Coisas da Corte das Areias", mais de uma centena de textos que "bati" para o "Jornal de Nisa" e "O Distrito de Portalegre", nestas teclas onde escrevo agora, merece todas as homenagens e distinções. Foi um filho, ilustre, de Nisa, nascido há 84 anos, em 1936. Foi um ser humano excepcional, que deu o melhor de si à terra que o viu nascer.
O que o João Francisco não foi e nunca será, é um "produto certificado", qual enchido, queijo ou bordado, como os que a edilidade coloca num cabaz de compras e com o selo "É Nisa, é Nossa!". 
Haja, pelo menos, um pouco de respeito pela sua memória.
Mário Mendes in "Alto Alentejo" - 18/11/2020