17.11.20

COISAS DA CORTE DAS AREIAS (4) - Dia de Romaria

É Dia da Senhora da Graça. Como em tantos outros anos, o dia amanheceu cinzento, nuvens altas correndo mansas, não prenunciavam muita chuva, ainda assim os mais prudentes dos romeiros que meteram pés a caminho, cumprindo a tradição, vão munidos do inseparável guarda-chuva que para alguns dos caminhantes adquire também o estatuto de bengala.
Passo cadenciado, não muito rápido, vão os mais jovens gastar cerca de 40 minutos, já os mais idosos vão gastar um pouco mais de tempo, tempo que irá ampliar-se de ano para ano, logicamente.
Percorrer aquele caminho em dia de festa é um prazer, um regresso ao passado que nenhum nisense esquece, além do mais é um exercício que permite olhar a natureza de perto, o horizonte ao longe, contemplar as flores, as cores, cheirando-lhe os aromas. E se elas são lindas, no desabrochar da Primavera, vivendo isoladas ou em grupo.
São as giestas de amarelo dourado vestidas, o branco e amarelo da camomila, o branco matizado da flor da esteva, o roxo do rosmaninho e tantas outras plantas.
Mas, não vão mais os romeiros olhar e “sentir” no Sítio do Encontro, a milenária oliveira de “pé de zambujo”, suporte de muitas cruzes ali deixadas por gente de fé, revivendo os “encontros” ali acontecidos com procissões vindas da Senhora da Graça e idas de Nisa.
Segundo José Francisco Figueiredo na Monografia da Notável Vila de Nisa – pág. 318, pelo menos vinte vezes após 1791 (220 anos) aquela velha árvore apadrinhou aquelas “procissões de penitência”, mas nem por isso a pouparam, sendo abatida, desnecessariamente e transformada em cinza, a 5 de Agosto de 2004, por gente sem fé, sem respeito pelo passado, pela tradição, gente difícil de entender. (1) Cerca de quatro quilómetros separavam Nisa do “Cabecinho da Senhora da Graça”, sua padroeira, distância que permite, para além do exercício e contemplação do horizonte, fruir a história, provavelmente, por aqui, neste caminho, terão transitado, vindos do sul, muitos peregrinos a caminho de Santiago, na Galiza.
No alto do “Retiro” quilómetro segundo, vão sentir a falta do “Penico do Pastor”, tronco piramidal de um cruzeiro dali roubado em 1929.
Percorridos mais 500 metros e eis-nos cruzando com a “Carreira Velha” (2) no sítio do Cancelão, seguindo para poente. Deste local até ao “Cabecinho” o espaço percorrido é agora pela “Estrada Romana da Ammaia” vinda de São Salvador da Aramenha (Marvão) procurando o Tejo em Vila Velha, via Monte Cimeiro.
Com a igreja da Padroeira à vista, as vistas são outras, mais alegres, mais a condizer com o sentimento de quem para lá caminha.
S. Miguel está em frente, exposta ao sol, a intervalos uma ou outra nuvem no céu projecta na seara a sombra, correndo. No alto, planando, os grifos espreitam, curiosos.
O São Lourenço é já ali, ao quilómetro terceiro. Ermida bonita mas azarada, já em 13 de Abril de 1987, em sessão da Assembleia Municipal denunciávamos a terraplanagem do adro e a abertura de duas porteiras, nunca ali existentes, o derrube e soterramento do marco quilométrico, que recuperámos e colocámos onde agora se encontra.
A pia da água benta era uma obra de arte lindamente trabalhada e que viria a ser roubada na semana de 20 a 26 de Setembro de 1992. Informado do sucedido, o sr. padre João Avelino e nós próprios participámos o acontecimento na GNR de Nisa no dia 26/9/92, sabendo-se que uma tentativa de roubo anterior tinha sido gorada devido à intervenção do sr. padre Assunção.
No ano seguinte (1993), coube a vez à cruz de pedra que encimava a porta, sendo roubada, facto divulgado pelo jornal “O Pregão” de Castelo de Vide. Na semana de 21 a 28 de Outubro de 2002, a fechar, alguém levou “a passear” as ombreiras da porta. Ei-la, agora, linda e restaurada, reinaugurada a 10 de Agosto de 2005, sendo responsável pela paróquia o sr. padre Horácio.
Da Igreja de S. Tiago resta um muro e dois contrafortes. A imagem do apóstolo, disse quem a viu numa arca da sacristia da ermida da Senhora da Graça, era, na iconografia, a do “Santiago Mata Mouros”, a cavalo, feita em barro.
Já nos Fiéis de Deus olhamos e damos pela falta. A calçada romana no caminho da ponte não está lá, foi destruída aquando do corte e recolha de eucaliptos que crescem junto à “Fonte Coberta”.
Na altura, convidámos um vereador da Câmara, nosso amigo, fomos lá e observámos o “crime”, cometido a 11 de Abril de 2003. Um terço da madeira estava por recolher, um terço da calçada romana por destruir. A questão foi levada à Câmara, disseram-nos que houve participação à GNR. Houve? A 16 de Maio, trinta e cinco dias depois o terço da madeira por apanhar estava apanhada, o terço da calçada por destruir, estava destruída.
Os nisenses ficaram mais pobres de património, quem devia agir não agiu, poupou energias...
Há que seguir em frente. Lá no alto, a sineta do campanário repica, serpenteando, os fiéis vão subindo ao cabecinho, vão tomar lugar, vão ouvir a missa. Entretanto, chega a banda de música tocando, vão ouvir, olhar o horizonte em redor.
Ali, no sopé do monte a lindíssima aldeia do Pé da Serra, ao longe, Montalvão acena. Mais longe, ainda, terras de Espanha. Para sul, S. Mamede e para norte, a Gardunha, a Estrela, um “espanto de vistas” lá no alto, reacção dos turistas que ali ocorrem numa primeira vez.
No fundo, bem lá no fundo, dando voltas e mais voltas, vai correndo a Ribeira de Nisa.
Notas
(1) Águas do Norte Alentejano? Câmara de Nisa? Quem responsabilizar?
(2) Já referenciada em 1412 (600 anos). Neste local, muito provável, a “Estrada Mourisca de Cória a Santarém”, segundo o itinerário do geólogo árabe Al-Istakhri (séc. X) como informa Carlos Tomás Cebola na “Revista Cultural de Nisa – 2001”

João Francisco Lopes - in "O Distrito de Portalegre" - 1/4/2010