19.11.20

COISAS DA CORTE DAS AREIAS (5) - Os velhos do Restelo

Mas um velho, de aspecto venerando,
Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós, os olhos, meneando,
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada, um pouco alevantando,
Que nós no mar, ouvimos claramente,
C´um saber só de experiência feito,
Tais palavras tirou do esperto peito:

“ Ó glória de mandar, ó vã cobiça
Desta vaidade a quem chamamos fama!
O fraudulento gosto que se atiça,
C´uma aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no leito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimentas!”

In “Os Lusíadas” – Canto Quarto – Luís de Camões

Para nós foi surpresa sabê-lo, confessamos, pois não o sabíamos mas soubemo-lo agora, lavrada que foi a sentença...
Nisa é terra de “velhos do Restelo”, gente antiquada, incapaz de olhar em frente, aceitar o “progresso”, o que é mau. Pior é saber-se que não são assim tão poucos, mas muitos, às centenas, a crer-mos em doutas opiniões escutadas. (1)
Se é que existem, aos “velhos do Restelo” cá do burgo aconselhamos que não se aflijam, provavelmente não estarão sós, a crer no aforismo popular por aqui sempre ouvido: “Quando nasce um pato, nasce uma pata”.
Assim sendo é de acreditar que também no feminino, se bem procuradas, as encontremos...
Há muitos anos, em casa de gente amiga, numa cidade à beira mar, conheci e ouvi um papagaio que tinha por hábito brindar as visitas com “música” nada agradável de ouvir. Claro que ele cantava assim porque alguém para assim cantar, “canções” que mais não eram, afinal, “letras” musicadas que repetia até à exaustão, sem que ele próprio soubesse o que estava cantando.
Serão os “velhos do Restelo” de Nisa uns “pobres de Cristo”, gente ultrapassada pelos tempos que correm?
Serão eles uns “coitadinhos” nostálgicos dos bens históricos da nossa terra (concelho) que vão assistindo à delapidação desses símbolos da memória e do passado, despejados, sem dó nem piedade, para o lixo?
Também “ele” o mítico “velho do Restelo”, de aspecto venerando, com saber de experiência feito, que se fez ouvir no cais frente às caravelas, era um ignorante?
Não seria ele, isso sim, a voz da sabedoria?
Do mesmo modo pensa Maria do Carmo Vieira, professora da Escola Secundária Marquês de Pombal, em Lisboa, quando e a propósito do ensino do português, critica, tendo como alvo os livros do 9º ano para 2004/2005. (2)
Afirma a professora que “os alunos deixam pela primeira vez de estudar o célebre episódio de “Os Lusíadas” em que o “velho do Restelo” é o protagonista”, acrescentando que “uma das conclusões a que chegou foi o desaparecimento da figura do “velho do Restelo” que simbolizava o espírito crítico em relação à decisão de o país se lançar na aventura dos Descobrimentos”.
Continuando, escreve: “O “velho” é a crítica, o símbolo da sabedoria e de um saber de experiência feito. É um artifício usado por Camões para expressar a sua posição crítica em relação ao rei, sem pôr em causa a autoridade”.
Ler ou ouvir, concordar ou discordar, comentar, é um exercício, um direito de todo o cidadão responsável, mas há que ter todo o cuidado quando se pretende achincalhar alguém utilizando palavras para o efeito, que o próprio utilizador parece não lhe conhecer o significado, resultando daí, não poucas vezes, ser o ónus bem mais gravoso para quem procura ofender e menos para o alvo que se procura atingir, só porque se recusa obedecer à “voz do dono” ou afinar pelo mesmo diapasão.
Certo é haver em Nisa “velhos do Restelo” que nunca, mas nunca, aceitariam emprestar o seu nome para algo que não seja da sua lavra.
Seria bonito, comovente até, sentirmos esta preocupação constante para com os “velhos do Restelo” de Nisa ser direccionada para os outros, similares, de todo o concelho, frequentadores habituais de habituais sítios, praças ou jardins, passeando ou fixados por ali, nos banquinhos, contando histórias fruto de um saber de experiência feito, histórias e memórias que quem de direito devia ouvir, anotar e editar, mas não ouve, não anota, e não edita.
Que pobreza!
- João Francisco Lopes in "O Distrito de Portalegre" - 4/2/2010
Notas
(1) – Em reunião da Assembleia Municipal foram referidos como “velhos do Restelo”... “cinco ou seis, sempre os mesmos” que se opuseram à transferência da fonte do Rossio, em Nisa. Informação que carece de idoneidade, pois no mínimo foram 350 os municípes que se manifestaram em abaixo-assinado dirigido à Câmara (e sobre o qual não obtiveram qualquer resposta) solicitando que a fonte se mantivesse no berço onde nasceu em 1932.
(2) “Expresso” – 23 de Outubro de 2004