27.11.20

A MORTE DE ANTÓNIO PARALTA FIGUEIREDO: Um nisense e cirurgião de elevado gabarito humano

Faleceu no princípio de Novembro, vítima da pandemia, o Dr. António Ribeiro Paralta Figueiredo, destacado médico e cirurgião, um dos pioneiros da cirurgia reconstrutiva em Portugal, com elevado desempenho a nível militar, mormente nos tempos de brasa da guerra colonial. No texto que segue, evocamos o homem, o médico e o ilustre cidadão nisense, com uma carreira militar e profissional que o colocam, sem favor, entre as figuras gradas de Nisa e do país. O texto tem por base uma entrevista que concedeu ao "Jornal de Nisa" em Junho de 2003, no seu consultório, em Lisboa.
É daquelas pessoas que não renega as origens, bem vincadas até no sotaque que não procura dissimular. Nascido em Nisa, o Dr. António Paralta Figueiredo, é um médico prestigiado em todo o país e do seu trabalho como cirurgião militar e civil, falam as inúmeras pessoas feridas com gravidade durante a guerra colonial. A introdução e o desenvolvimento da cirurgia reconstrutiva (plástica) em Portugal muito deve ao trabalho deste médico, por força da "necessidade que aguça o engenho", mas, sobretudo, pela determinação com que "agarrou esta especialidade.
Na entrevista, António Paralta Figueiredo falou-me das origens e das recordações de Nisa, onde nasceu e residiu até aos 12 anos. Confessou-me que, movido pela saudade, de quando em vez ia a Nisa, sozinho, para passear pelos sítios onde brincava na infância ou para percorrer locais mais íngremes e isolados, onde se deslocava com amigos, para caçar. Era uma espécie de intróito, o tempo feliz, para preparar a "viagem" até Angola onde cumpriu duas comissões de serviço militar, a primeira em 1962, que o puseram em contacto com o cenário de guerra e uma ex-colónia onde, a nível de saúde, faltava de tudo. " A nossa formação prática, quando acabamos o curso, é muito pouca e nós éramos colocados, "empurrados" para aqueles sítios, onde tínhamos que resolver os problemas todos, desde fracturas a doenças gravíssimas e depois no Leste, partos, por exemplo. Tinha a meu cargo todo aquele sector, tanto militar como civil e era um problema quando me aparecia destes (partos). A gente não sabia, tínhamos pouca formação e à custa de livros, de irmos estudando, tentávamos dar resposta ao que aparecia, problemas muito variados. Em 1961, quem é que sabia o que era medicina tropical, ou o que eram os paludismos e outras semelhantes? As doenças estavam lá, era preciso actuar e nós tínhamos que aprender."
O "teatro de guerra" despertou e consciencializou o jovem médico para as necessidades sentidas nessa especialidade, a cirurgia reconstrutiva.
"A guerra teve um bocado a ver, mas a ideia da cirurgia plástica desde sempre se manifestou, por um lado porque havia  necessidade, principalmente no que toca à cirurgia reconstrutiva, que era uma coisa brutal, pois nós recebíamos aqui no Hospital Militar todos os mutilados, todos os queimados, todos os amputados da Guerra do Ultramar dos três "teatros de operações". Isso estimulou-me bastante."
Perguntei-lhe que "sendo cirurgião que actua quase sempre no limite e lidando com situações extremas, deve, como médico, ser um paladino da esperança. Quando as coisas não correm tão bem, como é que essas situações mexem consigo?". Era uma questão quase invasiva da esfera privada, mas o Dr. António Paralta não "chutou" para longe, a pergunta.
"As pessoas podem pensar que os cirurgiões lidam com tantas situações, algumas no limite, situações muito graves que a certa altura tanto faz, endurecemos e não nos afecta absolutamente nada. Nada menos exacto do que isso. Situações como a de um jovem que teve um acidente e corre o risco de ver a perna ou o braço amputado, essas situações tiram-nos muitas noites de sono. Situações dessas - e eu tive muitas, principalmente, a nível militar - mexiam connosco. Veja o que é vermos gente nova, na flor da idade, indivíduos absolutamente estropiados, sem olhos, sem pernas, sem braços e nós tínhamos que tentar, que fazer alguma coisa. E às vezes faziam-se coisas que, esteticamente, até eram lindas. Imagine o que é um indivíduo levar um tiro na cara, ficar com a face desfeita e nós, depois de muitas operações, fazemos-lhe um nariz, uma boca, umas cavidades oculares. São resultados muito bons, esteticamente. Funcionalmente, nem tanto..."
A "outra face" da moeda, a do reconhecimento. Perguntei-lhe: "sente-se reconfortado quando alguém tratado por si, há anos, se lhe dirige?
"Com certeza e tem muito a ver com o que disse atrás. Nós recordamos pessoas e situações que tratámos há 10, 20, 30 anos. Tem acontecido muitas vezes estar a ver televisão, aparecerem deficientes das Forças Armadas e reconheço muitos deles. Grande parte passaram pelas minhas mãos. É uma grande compensação que nós temos, não é material, mas é muito gratificante."
Pergunto-lhe, por último:  a guerra colonial foi a grande responsável pelo aparecimento deste tipo de cirurgia?
"Na verdade este tipo de cirurgia foi um trabalho  exaustivo que nós tivemos durante aqueles 14/15 anos e que nos deram uma formação técnica como não havia mais ninguém que tivesse. Os cirurgiões plásticos do Hospital Militar dessa altura tinham uma formação técnica como não havia mais ninguém que tivesse. E, sabe, as guerras sempre tiveram uma grande contribuição para o desenvolvimento da medicina e principalmente na cirurgia. Grande parte das descobertas cirúrgicas e das modificações técnicas neste campo foram consequências da guerra."
Não esqueço esta nossa conversa, num dia de Junho no consultório da Avenida Marquês de Tomar. Voltámos a encontrar-nos três anos mais tarde, em 2006, em Nisa, por ocasião da homenagem ao seu avô, Professor José Francisco Figueiredo, a pretexto do 50º aniversário da edição do livro "Monografia da Notável Vila de Nisa".
António Ribeiro Paralta Figueiredo, nisense, médico notável, humanista, faleceu no início de Novembro e este texto mais não é do que singela homenagem ao seu profícuo labor em favor da medicina e dos homens que, como eu, demandaram terras africanas numa guerra que, ainda hoje, perdura na memória de tanta gente. A toda a família deste ilustre nisense, apresento as minhas sentidas condolências. 
António Paralta Figueiredo: Uma vida militar e profissional intensa 
1936 – Nasce em Nisa a 2 de Janeiro
1946 – Ingressou no colégio em Nisa, seguindo a sua instrução no liceu de Portalegre, terminando o liceu em Castelo Branco
1953 – Ingressou na faculdade de Medicina em Coimbra, transferindo-se no 4º ano para Lisboa
1961 – Licenciatura em Medicina na faculdade de Medicina de Lisboa
1962 – Embarcado na 1ª Comissão do Ultramar em Angola
1963 – Inicia funções como médico operacional na Escola Prática de Engenharia em Tancos
1964 – Estágio de CPRE no Hospital Militar principal e de Cirurgia Geral nos Hospitais Civis de Lisboa
1966 – Internato geral nos Hospitais Civis de Lisboa
1968 – Internato Complementar de Cirurgia nos Hospitais Civis de Lisboa
1970 - Embarcado na 2ª Comissão do Ultramar em Angola, iniciando funções como Chefe do serviço de Saúde Militar e no Hospital Militar de Luanda
1971 – Estágio em clínicas de CPRE na República da África do Sul
1972 – Interno do internato de Pediatria Cirúrgica nos Hospitais Civis de Lisboa
1972 – Especialista em CPRE pela Ordem dos Médicos aprovado por unanimidade
1973 – Exame final do internato em CPRE – classificação: Muito Bom
1974 – Exame final do internato em Pediatria Cirúrgica – classificação: Muito Bom
1974 – Chefe de Serviço de Cirurgia Plástica do Hospital Militar Principal
1975 – Especialista em CPRE dos Hospitais Civis de Lisboa – Classificação: 17 valores - 2º lugar
1976 - Júri de exames finais de internato em CPRE
1978 – Membro do Colégio de Especialistas de CPRE da Ordem dos Médicos
Décadas 80-90 - Frequentou o Curso dos Altos Estudos Militares, sendo promovido a Tenente-Coronel e posteriormente a Major-General. Desempenhou funções como Director da Casa de Saúde da Família Militar, Director do Hospital Militar de Doenças Infecto-contagiosas em Belém, Director do Hospital Militar Principal e Director Geral dos Serviços de Saúde do Exército.

Mário Mendes in "Alto Alentejo - 25/11/2020