Janelas abertas ao ar, vou andando pela casa fora a varrer o tédio para a rua. Esta mistura de quietude física e tensão emocional já me engordou três quilos. Se ao menos eu fumasse… Mas não! Não fumo há uma semana. O vírus despertou-me a virtude anti-tabágica, e já agora acho melhor conservá-la.
Todos os dias tenho jogado como o Covid 19 o jogo dos 19 cantinhos. A minha sala é enorme e eu dou-lhe vantagem. Quero que se sinta em casa, mas até hoje ganhei-lhe todas as partidas. Faço por apagar dos dias o sobressalto do medo, mas as televisões não me dão descanso. Os números aterradores são a impotência humana. Prometo estudar um dia a política da China para saber a quem competia matar os morcegos.
Mas nada me agrada mais do que ir à janela respirar silêncio e ver o fim do mundo em cada esquina: não há vivalma nas ruas, está tudo fechado, as lojas por fora e as pessoas por dentro. É como se um monstro achatado se arrastasse pelas ruas da cidade, capaz de entrar sem se ver pela fresta da porta de qualquer casa. A pastelaria da esquina, a senhora dos jornais, o cafezinho da frente, fugiram todos a trancar-se do Covid 19 a sete chaves do Areeiro. Alguns deixaram um bilhete na porta a despedirem-se até um dia tão incerto como incerta é a esperança. Desta vez a incerteza tem dupla face: quem poderá não voltar a ver quem? os lojistas, os clientes das lojas? ou os clientes das lojas, os lojistas?
Não se vê ninguém nas ruas. As velozes bicicletas verdes take away desapareceram repentinamente das ciclovias, e as ciclovias tão necessárias tornaram-se subitamente inúteis. As tão urgentes obras da Praça de Espanha também pararam. Os 435 hotéis construídos no ano passado fecharam mais rapidamente do que abriram. A pressa de todos os dias está agora suspensa por tempo indeterminado, à espera que o sinal do apito cósmico mande recomeçar a corrida. É como se o mundo tivesse entrado em estado de coma sem fim à vista. Até os aviões desapareceram dos céus de Lisboa, como quem diz esqueçam o Montijo e Alcochete porque a Portela chega muito bem até à chegada do próximo vírus.
Penso no Moletas da minha rua, o arrumador de carros que deixou de ter carros a partir e a chegar e lugares vagos para oferecer a troco de uma esmola. E nos sem-abrigo agora mais sem abrigo e sem quem lhes dê a sopa quente no frio de cada noite. Ouço dizer que a economia das nações irá abaixo, e de repente os governos prometem tanto dinheiro a toda a gente que a gente até se admira de afinal haver tanto dinheiro, que eu acho que é fogo de artifício de dinheiro. Neste momento é preciso acalmar a malta. Isto é como se fosse uma guerra, disse com ar sério um ministro qualquer, mas desta vez os americanos não têm Plano Marshall para ninguém. Também ouço dizer que isto faz bem ao ambiente, que reduz o dióxido de carbono, e concluo que se calhar o Covid 19 gosta mais da Terra do que nós. Nem tudo é mau, afinal.
O Covid 19 torna as pessoas melhores. O proprietário de um prédio pediu-me há dias para mover uma acção de despejo contra um desgraçado que deixou de pagar a renda da habitação social. Ontem telefonou-me “Olhe, se não se importa, não meta ainda a acção porque estamos a viver uma fase muito difícil.” Há dias era só o desgraçado a viver dias difíceis; hoje somos todos. Não há nada como uma desgraça colectiva para nos reduzir à nossa condição.
Evito correr riscos desnecessários, que o tempo não está para aventuras. Bem basta ter que atravessar a rua todos os dias para ir comprar o jornal. Subitamente tornei-me cumpridor. Agora, mesmo sem automóveis na rua, só atravesso com o sinal verde bem aceso. E também sigo à risca as recomendações dos técnicos de saúde. Ah, como eu gosto de ouvir os políticos dizerem que isto é um problema técnico, como se não fosse um problema político, como se não fosse política a decisão de gastar mais dinheiro com a banca ou com a guerra do que com a saúde e a investigação científica. E como eu gosto de ouvir todos os que nunca cuidaram de apoiar o Serviço Nacional de Saúde dizerem agora que é nele que está a nossa salvação.
Tomo os meus cuidados e pratico com afinco actos de cuidadosa higiene porque tenho em mãos trabalhos que gostaria de acabar em vida, e se não os acabar em vida dificilmente conseguirei acabá-los. E por falar em mãos, confesso que lavo as mãos 57 vezes por dia, nalguns dias até mais e sempre com muita energia, como se estivesse a lavar uma culpa difícil ou a apagar uma tatuagem foleira. Além disso, tenho um par de luvas que calço sempre para os pequenos gestos perigosos que nos pedem que evitemos, como meter o dedo no nariz ou arrancar de entredentes uma fibra de bacalhau do almoço. E depois há o papel higiénico, agora promovido a rei da festa, a imperial sumidade que se vai sumindo das prateleiras das lojas para fins muito diversos, mas a que não consigo dar outro destino que não seja a precária higiene íntima em que o uso desde que aprendi a limpar o rabo sozinho, já lá vão muitos anos…
Mas o melhor de tudo é a máscara com elástico de prender à nuca. É com ela que tapo a boca e o nariz sempre que falo ao telefone, não vá a fibra deixar passar alguma gotícula (adoro esta palavra) do Covid Saliva de Matos, que me liga a toda a hora e me põe os nervos em brasa.
António Montalvo - 19-3-2020* Cartoon de Henrique Monteiro in https://henricartoon.blogs.sapo.pt