23.3.20

MEMÓRIAS DE NISA: A Praça


Há em todas as terras do Alentejo, um espaço que povoa as memórias de infância, confluência de novos e velhos, retiro de brincadeiras e vivências que o tempo não consegue apagar.
Manuel da Fonseca descreve-o, admiravelmente, como O Largo.
O Largo, em Nisa, era a Praça, centro das nossas atenções, quartel-general improvisado de tantas brincadeiras, de grandes “conspirações” e não menos famosos planos de aventuras, em que a fantasia era fértil.
Ali jogávamos à bola, com a redondinha feita de trapos enfiados numa meia, os pés descalços, sentindo a rudeza do solo e com o imenso terreiro por nossa conta, até que os gritos do rapazio incomodassem os senhores da Câmara e nos mandassem, como saudação, a GNR. Depois era a debandada geral...
A Praça (Praça do Município) tinha um rosto diferente nesse tempo. Eram raros os automóveis, dois metros e pouco de calçada portuguesa em toda a volta e a parte central, em terra batida, era zona conquistada por nós.
Bola, jogo do pião, da pata, hóquei (sem patins e sem calçado que o tempo não se compadecia com esses luxos), uns cajados de improviso, imitando os stiks dos Velascos, Moreiras, Adrião e Bouçós, hoquistas elevados à categoria de heróis e que mantinham bem alto a supremacia “hoquista” sobre os espanhóis.
Hoje, está transfigurada a Praça. A taberna à esquina da Ruinha, onde os rapazes das sortes e os acompanhantes das bodas faziam paragem obrigatória, deixou de existir.
Um canteiro ajardinado, minúsculo, ocupa agora o espaço onde outrora estava a casa em que nasci, no extremo com a Rua Direita.
Do enorme espaço central, ficou apenas uma sentida recordação.
É certo que agora a Praça tem laranjeiras em volta, bancos de pedra, um jardim e, bem no centro cumpriu-se um dos desejos pelo qual muitos nisenses se bateram: a implantação do pelourinho, símbolo do poder municipal.
Concluíram-se as obras em 1969 e as autoridades municipais devem ter tido um trabalhão para conseguirem reunir os diversos elementos em mármore, do pelourinho, espalhados por vários locais de Nisa.
Na Praça, um belo edifício religioso: a Igreja da Misericórdia, entalada entre o antigo Hospital do mesmo nome e o edifício da Câmara. A igreja remonta ao século XVI.
A seu lado a casa sede do Município. Do século XVIII e, primitivamente, mais pequeno que o actual. (2)
Ainda na Praça, além do imponente edifício da Fundação Lopes Tavares, onde funciona actualmente a Misericórdia de Nisa, uma bela fonte em cantaria: a Fonte do Frade.
Diz o prof. José Francisco Figueiredo na sua Monografia da Notável Vila de Nisa que a fonte foi concluída em 1726 tendo um alto e sólido frontispício de granito, duas bicas, espaçoso chafariz e a nascente era a mais abundante de todas as fontes de outrora.
A Fonte do Frade foi implantada no caminho de Nisa para a Senhora da Graça, mais ou menos no sítio onde hoje estão as ruínas do antigo lavadouro municipal. Dizem-nos pessoas idosas que a fonte ocupava uma área bastante maior do que aquela onde hoje se encontra na Praça.
Voltamos à Praça do Município e à fonte. Aqui vinha o ti Camilo buscar água para o seu jumento e para abastecimento próprio. Dali se abasteciam a maior parte das casas da Vila, até à implantação da rede domiciliária de águas.
Ali se realizou, na fonte, um dos poucos e mais belos documentários feitos pela RTP em Nisa, em 1962, por intermédio do nisense Baptista Rosa.
É esta a Praça nova, moderna, socializada. Cruzam-na a toda a hora os automóveis, as pessoas apressadas, de papelada na mão.
Os velhos, no Verão, aceitam o desconforto dos bancos de granito, em troca da sombra e de uns momentos de conversa.
Desapareceu aquele espaço térreo onde brincávamos até para lá do sol-posto, corríamos, saltávamos ou atirávamos o pião e a pata.
O grande espaço, que se tornava pequeno quando, a uma voz, fugíamos a sete pés à frente da Guarda.
Está ali a Praça. Moderna, bela, funcional, para certos gostos. Colocaram o pelourinho numa redoma, cercado de arbustos que são árvores, de placas de identificação que nada informam, esconderam-no, literalmente, como se fosse algum monstro e não motivo de orgulho, história e memória.
Atravancada de carros e às vezes de entulhos e resíduos de obras, a Praça é apenas uma imagem travestida daquele largo enorme e nosso, onde se ouviam os pregões do ti Relvas, as imprecauções do Adolfo e passavam as procissões, em cadência solene, sobre o chão atapetado de flores e verdura.
Mário Mendes
Notas
1. Figueiredo, José Francisco, "Monografia da Notável Vila de Nisa"
2. idem