Há em todas as terras do Alentejo, um
espaço que povoa as memórias de infância, confluência de novos e
velhos, retiro de brincadeiras e vivências que o tempo não consegue
apagar.
Manuel da Fonseca descreve-o,
admiravelmente, como O Largo.
O Largo, em Nisa, era a Praça, centro
das nossas atenções, quartel-general improvisado de tantas
brincadeiras, de grandes “conspirações” e não menos famosos
planos de aventuras, em que a fantasia era fértil.
Ali jogávamos à bola, com a
redondinha feita de trapos enfiados numa meia, os pés descalços,
sentindo a rudeza do solo e com o imenso terreiro por nossa conta,
até que os gritos do rapazio incomodassem os senhores da Câmara e
nos mandassem, como saudação, a GNR. Depois era a debandada
geral...
A Praça (Praça do Município) tinha
um rosto diferente nesse tempo. Eram raros os automóveis, dois
metros e pouco de calçada portuguesa em toda a volta e a parte
central, em terra batida, era zona conquistada por nós.
Bola, jogo do pião, da pata, hóquei
(sem patins e sem calçado que o tempo não se compadecia com esses
luxos), uns cajados de improviso, imitando os stiks dos Velascos,
Moreiras, Adrião e Bouçós, hoquistas elevados à categoria de
heróis e que mantinham bem alto a supremacia “hoquista” sobre os
espanhóis.
Hoje, está transfigurada a Praça. A
taberna à esquina da Ruinha, onde os rapazes das sortes e os
acompanhantes das bodas faziam paragem obrigatória, deixou de
existir.
Um canteiro ajardinado, minúsculo,
ocupa agora o espaço onde outrora estava a casa em que nasci, no
extremo com a Rua Direita.
Do enorme espaço central, ficou apenas
uma sentida recordação.
É certo que agora a Praça tem
laranjeiras em volta, bancos de pedra, um jardim e, bem no centro
cumpriu-se um dos desejos pelo qual muitos nisenses se bateram: a
implantação do pelourinho, símbolo do poder municipal.
Concluíram-se as obras em 1969 e as
autoridades municipais devem ter tido um trabalhão para conseguirem
reunir os diversos elementos em mármore, do pelourinho, espalhados
por vários locais de Nisa.
Na Praça, um belo edifício religioso:
a Igreja da Misericórdia, entalada entre o antigo Hospital do mesmo
nome e o edifício da Câmara. A igreja remonta ao século XVI.
A seu lado a casa sede do Município.
Do século XVIII e, primitivamente, mais pequeno que o actual. (2)
Ainda na Praça, além do imponente
edifício da Fundação Lopes Tavares, onde funciona actualmente a
Misericórdia de Nisa, uma bela fonte em cantaria: a Fonte do Frade.
Diz o prof. José Francisco Figueiredo
na sua Monografia da Notável Vila de Nisa que a fonte foi concluída
em 1726 tendo um alto e sólido frontispício de granito, duas bicas,
espaçoso chafariz e a nascente era a mais abundante de todas as
fontes de outrora.
A Fonte do Frade foi implantada no
caminho de Nisa para a Senhora da Graça, mais ou menos no sítio
onde hoje estão as ruínas do antigo lavadouro municipal. Dizem-nos
pessoas idosas que a fonte ocupava uma área bastante maior do que
aquela onde hoje se encontra na Praça.
Voltamos à Praça do Município e à
fonte. Aqui vinha o ti Camilo buscar água para o seu jumento e para
abastecimento próprio. Dali se abasteciam a maior parte das casas da
Vila, até à implantação da rede domiciliária de águas.
Ali se realizou, na fonte, um dos
poucos e mais belos documentários feitos pela RTP em Nisa, em 1962,
por intermédio do nisense Baptista Rosa.
É esta a Praça nova, moderna,
socializada. Cruzam-na a toda a hora os automóveis, as pessoas
apressadas, de papelada na mão.
Os velhos, no Verão, aceitam o
desconforto dos bancos de granito, em troca da sombra e de uns
momentos de conversa.
Desapareceu aquele espaço térreo onde
brincávamos até para lá do sol-posto, corríamos, saltávamos ou
atirávamos o pião e a pata.
O grande espaço, que se tornava
pequeno quando, a uma voz, fugíamos a sete pés à frente da Guarda.
Está ali a Praça. Moderna, bela,
funcional, para certos gostos. Colocaram o pelourinho numa redoma,
cercado de arbustos que são árvores, de placas de identificação
que nada informam, esconderam-no, literalmente, como se fosse algum
monstro e não motivo de orgulho, história e memória.
Atravancada de carros e às vezes de
entulhos e resíduos de obras, a Praça é apenas uma imagem
travestida daquele largo enorme e nosso, onde se ouviam os pregões
do ti Relvas, as imprecauções do Adolfo e passavam as procissões,
em cadência solene, sobre o chão atapetado de flores e verdura.
Mário Mendes
Notas
1. Figueiredo, José Francisco, "Monografia da Notável Vila de Nisa"
2. idem