Já as fôramos vendo a caminho da capital da província do Khyber
Pakhtunkhwa, descendo de um lugar a norte onde as mulheres do povo Kalash não
usam burca, mas são de uma beleza tão transcendental que acabam desrespeitadas
nas suas tradições, levadas para as cidades por homens embevecidos e
convertidas ao Islão.
Fôramos somando as expressões de perplexidade perante cada vez mais
burcas que associamos ao Afeganistão, azuis mas também em tons terrosos, a
caminhar nas bermas, a fazer compras nos mercados de rua. E, sobretudo, a um
pormenor muito particular: muitas daquelas mulheres usavam a burca atirada para
trás da cabeça, de rosto tisnado à vista de todos.
É assim nas ruas de Peshawar. Só podemos daí tirar uma conclusão: a
burca, ali, é uma simples peça de roupa, usada como bem aprouver a quem a
escolhe para sair de casa, prática por proteger do sol e do calor que, naquela
região, sabem ser infernalmente intensos.
Sabemos que não é sempre assim, são demasiadas as notícias em sentido
contrário vindas do Afeganistão, onde a burca é imposta. Mas essa é uma decisão
de um punhado de radicais instalados no poder de um Estado.
O Islão, em si, não impõe burca nem niqab. Impõem recato, como impõe a
religião católica, regra ainda hoje respeitada por muitas portuguesas na hora
de ir ao Senhor - e por muitas avós do Interior do nosso país, porque foi assim
que aprenderam a ser e gostam de se dar ao respeito. No Paquistão, a maioria
dos casos pareceu-nos uso de livre escolha.
Num prolongado voo de pássaro pomo-nos em Portugal, onde esta semana
foi aprovada um proposta de lei do Chega para proibir "a utilização, em
espaços públicos, de roupas destinadas a ocultar ou a obstaculizar a exibição
do rosto", com exceção das máscaras cirúrgicas ou de Carnaval. Entenda-se,
portanto, o que sobra: a burca e niqab, até porque o texto pede que seja
"proibido forçar alguém a ocultar o rosto por motivos de género ou
religião".
Pode alegar-se segurança (a burca servir para esconder maus fígados),
mas não se pode alegar a defesa dos direitos das mulheres. Porque, cá como em
Peshawar, a imposição é a da vontade própria. E proibir é a mais estranha forma
de dar liberdade a quem quer que seja. Para já não falar das multidões de
burcas e hijabs que cruzamos nas ruas portuguesas. Já grávidas a parir...
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Ivete Carneiro – Jornal de Notícias - 19 de
outubro, 2025