Caro(a) leitor(a), neste Dia Nacional de Luta Contra a Dor,
convido-o(a) a fazer uma viagem metafórica comigo. Não se importa de me
acompanhar?
Imagine que a dor é como uma viagem de avião na qual embarcou. Essa
viagem pode ser previsível ou inesperada: por vezes mais curta, como um voo
dentro da Europa (dor aguda), ou mais longa, como uma travessia
intercontinental (dor crónica). Concordamos que, independentemente da
distância, a viagem pode ser tranquila ou turbulenta — tal como a dor pode
estar sob maior ou menor controlo.
Sabemos também que os passageiros são muito distintos: uns mais
preparados e proativos, outros mais ansiosos, inquietos e reativos. Uns confiam
no destino, outros questionam se chegarão em segurança. Isto mostra-nos o quão
pessoal é a experiência da dor, que envolve não apenas aspetos biológicos e
sensoriais, mas também dimensões emocionais, comportamentais e sociais.
Chegou ao voo. Cinto de segurança apertado, começa a viagem. Desde cedo
o corpo pode dar sinais de alarme: maior intensidade, maior frequência ou maior
impacto na qualidade de vida. É preciso estar atento às indicações da
tripulação — luzes, oxigénio, colete salva-vidas — representando intervenções que
podem ser mais ou menos invasivas. O passageiro deve sentir-se confortável e
saber que, em qualquer momento, pode chamar a equipa de bordo. Aqui reforçamos
a importância do autorrelato e do contacto próximo com as equipas de saúde.
Embora o destino seja conhecido (controlo da dor), a paisagem nem sempre é
nítida. E a dor, apesar de desagradável, não tem de estar inevitavelmente
associada a sofrimento.
Mas e se a turbulência não acaba? A dor crónica, não controlada,
desgasta como horas intermináveis num avião sem descanso. Perturba o sono,
rouba energia, limita movimentos, promove isolamento social. Alguns passageiros
chegam a pensar: “Será que vou aguentar até ao destino? Não seria melhor uma
paragem de emergência?” O impacto da dor é, muitas vezes, maior do que
imaginamos. Não existe apenas “uma dor”; existem dores.
Não podemos esquecer a tripulação. Nenhum voo é seguro sem ela. No caso
da dor, a equipa inter e multidisciplinar — médicos, enfermeiros, psicólogos,
fisioterapeutas, assistentes sociais, entre outros — desempenha esse papel.
Queremos os cuidados certos, no tempo certo, para a pessoa certa, pela equipa
certa. Sempre coordenados, em comunicação, atentos às necessidades do
passageiro, escutando, questionando e orientando.
Também a aeronave é determinante. Tal como um avião precisa de motores
potentes, a gestão da dor depende de fármacos específicos. Analgésicos simples
(paracetamol, anti-inflamatórios) são úteis em percursos curtos, em dores menos
intensas. Em viagens mais exigentes, pode ser necessário reforço: opióides
ajustados (morfina, tramadol), antidepressivos (amitriptilina, duloxetina),
anticonvulsivantes (gabapentina, pregabalina) ou formulações de libertação
prolongada que mantêm estabilidade ao longo do voo. A chave está na dose certa,
no momento certo, evitando excesso ou falha de combustível.
Mas não basta o motor funcionar: é preciso que os serviços a bordo
maximizem o conforto. As abordagens não farmacológicas — fisioterapia,
psicoterapia, técnicas de relaxamento, meditação, música, acupuntura — são como
comodidades que transformam um voo turbulento numa experiência mais serena.
E olhando para o “avião” futuro? As novas tecnologias já estão a mudar a forma como “voamos” sobre a dor. Dispositivos de neuromodulação funcionam como sistemas avançados de navegação, ajustando sinais nervosos em pleno voo. A realidade virtual distrai a mente e reduz a perceção da dor, como se oferecesse ao passageiro uma janela com paisagens tranquilas. Aplicações móveis monitorizam sintomas em tempo real, comunicando com a tripulação em terra e ajustando a rota sempre que necessário. Até jogos estão a ser usados como intervenção. Será isto o futuro ou já o nosso presente?
E, sem darmos conta, chegamos à aterragem. No caso da dor, não falamos
apenas em eliminar totalmente o desconforto — muitas vezes impossível —, mas em
aterrar com segurança, dignidade e qualidade de vida. Uma viagem longa pode ser
cansativa, mas, se bem acompanhada, o passageiro sente-se cuidado e protegido.
E, tal como em muitos voos, podemos terminar com aplausos: um gesto simples que
gera ânimo, sorrisos e cumplicidade entre passageiros e tripulação.
Obrigado pela companhia nesta viagem. A dor crónica não controlada é
como uma turbulência persistente em pleno voo: compromete o sono, gera fadiga,
reduz a mobilidade e favorece ansiedade e depressão. Está associada a maior
risco (cardio)vascular, maior dependência funcional e isolamento social.
Reconhecer estes sinais e agir precocemente permite transformar a viagem em
percurso mais estável, com segurança, conforto e dignidade.
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Ricardo Fernandes - Coordenador do Núcleo de
Estudos de Medicina Paliativa da SPMI