O Sacristão
Isaías e o Padre Bonifácio
Ninguém por estas redondezas,
tinha um coração maior que o mestre alfaiate. Sempre teve a casa cheia de
gente, tagarelando, falando das dificuldades da vida, enquanto ele ia talhando
um fato, dando uns pontos num casaco ou ajeitando as bainhas de umas calças de
surrobeco ou pondo umas brasas no ferro de engomar. Aprendizes da arte de
alfaiate tinha-os em diversos escalões etários, onde cada um ia desenvolvendo e
demonstrando as suas aptidões, tendo como principal objectivo, a fuga à
picareta e à enxada.
Toda a gente gostava dele e ele
gostava de toda a gente. Nunca se zangava, fosse com quem fosse, mesmo quando
algum freguês já sem paciência, por não lhe ter fato pronto, o tratava mal,
vendo jeitos de ter que ir a ser padrinho com o fato velho.
Como o já lendário e velhote
sacristão, foi chamado à presença divina, sem ninguém esperar, o senhor padre
Bonifácio ficou sem saber, a quem havia de recorrer para o ajudar nas coisas do
céu, pois a maioria do seus paroquianos, mourejavam de sol a sol, no campo,
lavrando, semeando, ceifando e debulhando, durante uma semana inteira, folgando
apenas aos domingos, pela tardinha.
A única pessoa, depois de muito
pensar, que ele encontrou, foi o mestre alfaiate.
Logo que teve oportunidade,
entrou-lhe pela porta dentro, depois de uma saudação muito amistosa, disse-lhe
ao que o ali o levava.
- Mestre alfaiate, como sabe
faleceu há poucos dias, o senhor Pires, amigo e antigo sacristão. -Venho
convidá-lo para exercer essa função, pois acho que o senhor é a pessoa indicada
e das únicas que está quase sempre disponível, trabalha por conta própria, tem
um bom feitio e todo o povo acha que é a pessoa indicada, para o desempenho
desta função.
- Oh, senhor prior, peço-lhe
desculpa, mas não posso aceitar, não tenho jeito para essas coisas e sinto até
algumas dificuldades em acompanhar um funeral.
-Vai ver que, é como todas as
coisas, uma questão de hábito. E, além disso, a função do sacristão, não é só
ir à frente num funeral com a cruz.
- Além das missas e funerais,
temos baptizados e casamentos, onde como sabe, somos sempre convidados de
honra, para a mesa grave.
-Pois é, mas eu nem sequer sei
rezar um padre-nosso ou uma Ave - Maria.
-Isso ensino-lhe eu, em dois
tempos, retorquiu o padre serenamente.
Mestre alfaiate, com estas
razões, apresentadas pelo senhor prior ficou indeciso, sem saber para que lado
havia de tombar.
Como gostava de beber uns
copinhos, e o senhor prior também, talvez não fosse má ideia aceitar e tinha a
impressão que se iam dar muito bem.
Quando o senhor prior o visitou
pela segunda vez e lhe começou a conversa, ainda arranjou alguns argumentos,
mas de fraca convicção, acabando por aceitar.
Sempre foi um sacristão
desajeitado, não tinha mesmo vocação para tal função. Enganava-se nos
procedimentos, as palavras não lhe saíam com a devida fluência, mas tudo lhe
era desculpado devido ao seu bom feitio.
Em Dezembro e Janeiro, em todos
os lares da aldeia, era um ritual antigo, proceder-se à matança do porco e à
cura dos enchidos respectivos.
Chouriços, linguiças morcelas,
paio, farinheiras, mouras, cacholeiras,enfiados em varas compridas no fumeiro,
por cima do lume de chão, todos se abanavam quando o calor e o fumo lhes
chegavam por perto. Era uma boa altura para fazer uma visita, aos paroquianos
mais abastados, quer na fé quer no fumeiro, beber uns copinhos, sem ser de
caixão à cova e ainda levar qualquer coisa pró caminho. Era Janeiro, já bem
tratados e aviados, em casa da senhora Maria dos Santos, esta enquanto se foi
despedindo, escolheu do melhor que tinha no fumeiro, cortou a baraça a duas
peças de cada qualidade, meteu-as numa típica bolsa de pano e disse ao senhor
prior:
- Faça-me um favor senhor padre
Bonifácio, leva esta oferta para a festa do Mártir Santo, em Nisa, que é
brevemente.
- Como queira D. Maria, agradeceu
e retirou-se, com a “malvada” cheia e os “cágados” quentes.
Durante a semana foram saboreando
as iguarias, com um tinto da adega, nunca mais se lembraram da festa do Mártir
Santo, mas quando o material ia quase de resto, o sacristão lembrou-lhe:
-Senhor prior e o Mártir Santo? Eu tenho a certeza que ele não é apreciador de
carne de porco, é preciso é que D. Maria não se vá lá confessar.
Na oficina de mestre alfaiate,
reunia-se toda a população, em especial nos dias de chuva, quando não era
permitido o trabalho do campo. Conversas sobre as coisas mais simples, que se
passavam na aldeia, onde qualquer acontecimento servia de tema e de discussão.
-Isto é que vai aí um tempo,
chuva e mais chuva, anda meio Pé da Serra constipado, afirmou o “ti” Artur,
homem que mourejava, desde que o Sol nascia, até se por, sendo a chuva o único
elemento, que lhe proporcionava estar de costas direitas.
Fosse Domingo ou dia Santo, nunca
pôs as botas numa taberna.
-Não bebem, afirmou o mestre
alfaiate, se bebessem…
E verdade se diga, nem mestre
alfaiate, nem o senhor prior, nunca nas suas vidas se constiparam.
- Essa é boa! Disse o Baptista.
Olha, o “barbeta”, chega-lhe bem e ainda ontem cá veio o doutor Carlos
Gonçalves a vê-lo. Há dois dias que está de cama.
- Mestre alfaiate, tirou o dedal,
deixou ficar a agulha a marcar a manga do casaco, olhou os presentes e afirmou categoricamente!
-Isso foi ele que ficou algum dia sem beber.
Risada geral, com alguns
comentários de caçoada.
José Hilário -