17.8.18

OPINIÃO - Querida Aretha Franklin: está no céu a voz que passava a vida no céu e levava-nos até lá

É difícil imaginar que a autora desta música eternamente nova seja capaz de morrer. Morrer parece uma coisa tão banal para um ser tão mágico - no verdadeiro sentido da magia, de ser uma maravilha inexplicável.
Aretha Franklin não era capaz de só cantar. Musicava a voz. A voz dela aventura-se, sai sem pensar por um caminho desconhecido que logo se verá aonde vai dar. Na esperança certa de surpreender-se, de chegar onde nunca dantes chegou, inventando uma nova música, uma nova maneira de fazer dançar a voz, uma outra canção escondida na cantiga que só ela é que ouvia e reproduzia, soltando-se para a canção se ir soltando também.

Há um ensaio de estúdio de You're  All  I  Need To Get  By (Take 1) que dura 42 segundos. "Are you taping this, Jerry?", pergunta Aretha a Jerry Wexler. Nesses 42 segundos, gravados em 1971, ouve-se o cérebro dela a correr à frente da voz. Isto é o que Aretha Franklin faz a uma canção enquanto espera.
Na take 2 ela vai mais longe, explorando a canção com aquela voz divina, tão irrequieta, desinibida, directa, majestaticamente terrestre e humana.
Aretha Franklin não tinha medo de nenhuma música, de nenhum músico.
Ouviu o tremendo Respect cantado taxativamente por Otis Redding e disse que queria gravar a versão dela. Que conseguiu ser ainda mais soberba, ao ponto daquela gravação masculina, feita por um homem genial sobre o respeito que os homens procuram, ter sido transformada numa gravação feminina, feita por uma mulher genial, sobre o respeito de que as mulheres precisam.
E até ter transcendido tudo, até ser sobre o respeito humano que toda a humanidade precisa - "até as crianças e os bebés", disse Aretha numa entrevista recente à Vogue.
Também You're  All  I  Need To Get  By tinha sido gravado em 1968 por Marvin Gaye e Tammi Terrell. Onde artistas menores viam versões definitivas Aretha Franklin via pontos de partida. Onde outros viam gravações, ela via veículos para transportá-la para o paraíso da música.
O génio de Aretha era tal que ela cantava para saber o que ela ainda não sabia. Não era capaz de ensaiar sem mudar tudo, de todas as maneiras, da maneira menos consciente: vamos ouvir o que sai daqui.
Não vai sair coisa conhecida. Vai sair coisa bonita, nunca dantes ouvida. E eu quero ouvir porque não há mais ninguém capaz de cantar assim, como o traço do lápis de Paul Klee.
A música da voz dela é verdadeiramente universal. Começa-se a gostar em criança porque parece desobediência, parece liberdade, soa a alguém que se está a divertir mais do que qualquer outra pessoa, mais do que deveria, mais do que gostariam os adultos.
Na expansão da voz dela ouve-se e sente-se, participa-se na alegria de conseguir cantar assim, como se só a voz dela pudesse explicar o que está ali escondido e tornar tudo irresistivelmente nosso, de todo o mundo, preso à voz dela, eufórico com a sorte que tem de poder ouvi-la.
Aretha Frankin era uma inventora musical tão profunda, expressiva e talentosa que arriscava sempre tudo, oferecendo-nos o prazer de correr todos os riscos com ela.
É difícil imaginar que a autora desta música eternamente nova seja capaz de morrer. Morrer parece uma coisa tão banal para um ser tão mágico - no verdadeiro sentido da magia, de ser uma maravilha inexplicável.
Pode-se contar com ela. Sempre que a música parece parada a música dela está cá para mostrar como a música se mexe. A música de Aretha Franklin é um tesouro vivo, uma música que voa inesperadamente cada vez que passamos por ela.
A maravilha de Aretha Franklin era inexplicável mas cada um, seja criança ou crescida, sente-a completamente. A música dela era música de amor, de todos os amores que há em nós. E é real quando está na voz dela. É isso que é magia. É isso que temos de agradecer. É isso que temos de guardar. A realidade da música dela, chegada ao céu.
Porque não há-de vir mais nenhuma Aretha Franklin. Aquela que temos terá de durar para sempre. 
Felizmente chega e sobra.
 16 de Agosto de 2018
Miguel Esteves Cardoso in "Público"