É difícil imaginar que a autora desta música eternamente
nova seja capaz de morrer. Morrer parece uma coisa tão banal para um ser tão
mágico - no verdadeiro sentido da magia, de ser uma maravilha inexplicável.
Aretha Franklin não era capaz de só cantar. Musicava a voz.
A voz dela aventura-se, sai sem pensar por um caminho desconhecido que logo se
verá aonde vai dar. Na esperança certa de surpreender-se, de chegar onde nunca
dantes chegou, inventando uma nova música, uma nova maneira de fazer dançar a
voz, uma outra canção escondida na cantiga que só ela é que ouvia e reproduzia,
soltando-se para a canção se ir soltando também.
Há um ensaio de estúdio de You're All
I Need To Get By (Take 1) que dura 42 segundos. "Are you taping this,
Jerry?", pergunta Aretha a Jerry Wexler. Nesses 42 segundos,
gravados em 1971, ouve-se o cérebro dela a correr à frente da voz. Isto é o que
Aretha Franklin faz a uma canção enquanto espera.
Na take 2 ela vai mais longe, explorando a canção com aquela
voz divina, tão irrequieta, desinibida, directa, majestaticamente terrestre e
humana.
Aretha Franklin não tinha medo de nenhuma música, de nenhum
músico.
Ouviu o tremendo Respect cantado taxativamente por Otis
Redding e disse que queria gravar a versão dela. Que conseguiu ser ainda mais
soberba, ao ponto daquela gravação masculina, feita por um homem genial sobre o
respeito que os homens procuram, ter sido transformada numa gravação feminina,
feita por uma mulher genial, sobre o respeito de que as mulheres precisam.
E até ter transcendido tudo, até ser sobre o respeito humano
que toda a humanidade precisa - "até as crianças e os bebés", disse
Aretha numa entrevista recente à Vogue.
Também You're
All I Need To Get
By tinha sido gravado em 1968 por Marvin Gaye e Tammi Terrell. Onde
artistas menores viam versões definitivas Aretha Franklin via pontos de
partida. Onde outros viam gravações, ela via veículos para transportá-la para o
paraíso da música.
O génio de Aretha era tal que ela cantava para saber o que
ela ainda não sabia. Não era capaz de ensaiar sem mudar tudo, de todas as
maneiras, da maneira menos consciente: vamos ouvir o que sai daqui.
Não vai sair coisa conhecida. Vai sair coisa bonita, nunca
dantes ouvida. E eu quero ouvir porque não há mais ninguém capaz de cantar
assim, como o traço do lápis de Paul Klee.
A música da voz dela é verdadeiramente universal. Começa-se
a gostar em criança porque parece desobediência, parece liberdade, soa a alguém
que se está a divertir mais do que qualquer outra pessoa, mais do que deveria,
mais do que gostariam os adultos.
Na expansão da voz dela ouve-se e sente-se, participa-se na
alegria de conseguir cantar assim, como se só a voz dela pudesse explicar o que
está ali escondido e tornar tudo irresistivelmente nosso, de todo o mundo,
preso à voz dela, eufórico com a sorte que tem de poder ouvi-la.
Aretha Frankin era uma inventora musical tão profunda,
expressiva e talentosa que arriscava sempre tudo, oferecendo-nos o prazer de
correr todos os riscos com ela.
É difícil imaginar que a autora desta música eternamente
nova seja capaz de morrer. Morrer parece uma coisa tão banal para um ser tão
mágico - no verdadeiro sentido da magia, de ser uma maravilha inexplicável.
Pode-se contar com ela. Sempre que a música parece parada a
música dela está cá para mostrar como a música se mexe. A música de Aretha
Franklin é um tesouro vivo, uma música que voa inesperadamente cada vez que
passamos por ela.
A maravilha de Aretha Franklin era inexplicável mas cada um,
seja criança ou crescida, sente-a completamente. A música dela era música de
amor, de todos os amores que há em
nós. E é real quando está na voz dela. É isso que é magia. É
isso que temos de agradecer. É isso que temos de guardar. A realidade da música
dela, chegada ao céu.
Porque não há-de vir mais nenhuma Aretha Franklin. Aquela
que temos terá de durar para sempre.
Felizmente chega e sobra.
Miguel Esteves Cardoso in "Público"