A propósito da exposição "Objectos utilizados no quintal da festa",que durante o mês de Novembro foi mostrada ao público na Biblioteca Municipal de Nisa, organizada pela Associação Nisa Viva, julgo oportuno transcrever (e recordar) a mais antiga descrição que se conhece sobre este tradicional costume tipicamente nisorro e que foi mantido ao longo de várias gerações, constituindo um modo verdadeiramente sui generis de celebrar o casamento, em terras alentejanas.
Como curiosidade e atestando a genuinidade e tradição desta iguaria gastronómica nisense, encontramos na descrição (o livro é de meados do séc. XIX) referência aos Maranhos...
Avancemos com a Descripção das bôdas e casamentos das classes inferiores
d´esta villa, que apresentam certas originalidades dignas de se memorarem por
sua singularidade e velhice.
(...) "Na véspera do noivado pela tarde vão-se juntando no quintal
da festa as donzellas convidadas para escolherem a carne, onde estão os rapazes
matando e esfolando as badanas e cabras, que os pastores deram para se
immolarem e comerem na festa; concluída a operação, e mettidas as postas em
grandes cassarollas, que se arrimam symetricamente em roda das paredes, e
entregues aos cuidados e perícia de cinco ou seis cosinheiros, volta o alegre
rancho para a casa da festa, onde a alegria e a satisfação os esperam, porque,
assim que elle chega, tocam as violas, e começam os bailes, as rodinhas, os
cantares e os folguedos de uma mocidade ébria de prazer e de goso: no fim da
tarde e principio da noite chegam os noivos e tomam parte no divertimento rindo
e brincando também, e ali se conservam até à meia-noite separando-se para se
prepararem para o augusto sacramento, que hão de celebrar no dia seguinte.
Com a entrada dos noivos começam a entrar também os
serviços, que cada um dos convidados leva ou manda, e que á proporção, que se
recebem, se relacionam em um caderno, que um escrevente improvisado tem sobre
uma mesa collocada á porta da casa, onde se recolhem: providencia muito
salutar, que os livra de muitos apuros e logros!
Consistem os serviços em pão cosido ou em grão; os da
primeira espécie constam de doze pães de trigo levados em um taboleiro com sua
toalha de folhos de renda; os da segunda em um alqueire de trigo ou centeio; e
os dos padrinhos e madrinhas no dobro d´estas quantidades, e alguns mais
generosos e abastados mandam o quadruplo; os que dão este serviço ficam com o
direito incontestável de serem admittidos ao almoço e jantar da festa, levando
consigo a sua família e domésticos; e não indo, a esperarem em casa por um
grande prato de carne refogada com azeite, salsa, cebola e pimenta, e outro
mais pequeno de arroz amarello com tanta pimenta, que mal pode ás vezes
mastigar-se, e engulir-se.
Os padrinhos além d´esta substancial refeição, são ainda
agraciados com um prato de sangue e fígado para o almoço, tão apimentado como o
refogado e arroz, que também lhes mandam para jantarem; e isto ainda que elles
sejam os mais opulentos e nobres da villa.
O dia das bodas é de regosijo e divertimento, e ao mesmo
tempo de abundância e regalo para todos os que tomam parte n´ellas: logo ao
despontar da aurora velhos e moços, empregados nas ocharias, e repartição
gastronómica, tratam de preparar o almoço, que constam do sangue e intestinos
das victimas caprinas e bodinas, recheados com cebola, salsa e o indispensável
pimentão, e das tripas, de que fazem um pequeno novelo, que denominam maranhos,
cozidos com arroz, e que constitue um manjar delicioso para aquelles exigentes
e robustos estômagos.. Pelas oito horas da manhã começam a collocar-se as
mesas, que são grandes escadas de mão, postas horisontalmente sobre duas
tripeças ou bancos, e cobertas de toalhas de uma alvura admirável, em cima das
quaes se põe sem ordem o pão, e o vinho em palanganas de louça branca, e junto
d´ellas pequeninas tijelas, por onde se bebe.
Depois de tudo assim disposto e ordenado, começam a entrar
os convidados, que, à proporção que chegam, vão tomando logar sem distincção de
sexo, idade, ou condição; e depois de todos cheios, e sentados os convivas,
chaga o apontador dos serviços, orgulhoso com a importância momentânea da
necessidade, e por uma rigorosa chamada para verificar, como os Efforos de
Lacedemonia nas mesas comuns, que Licurgo instituiu, os que faltam e têem de
ser indemnisados d´esta perda; ou para expulsar aquelles que intempestivamente
ali se collocarem; porque desgraçado d´aquelle que sem ter concorrido com
serviço e sem que o seu nome fosse inscripto no registo fatal, ali se
assentasse; seria expulso no meio dos apupos e surriada da assembléa inteira.
(...)
Verificados os poderes, começa então a comida, e cada um dos
circunstantes, servindo-se dos garfos, colheres e facas, que trouxeram, mostra
a sua habilidade e desembaraço gastronómico; e as fumegantes iguarias vão pouco
e pouco desapparecendo dos grandes pratos, em que as pozeram e onde logo são
substituídas por outras igualmente apetitosas e substanciaes; mana o vinho das
amphoras, e dos odres para as palanganas, todos e todas bebem e se alegram por
tal forma, que as bodas de Camacho, onde o pobre Sancho se regalou, não foram
mais abundantes nem mais alegres.(...)
Motta e Moura - Memória Histórica da Notável Vila de Nisa - Págs 144 a 152