Conheci o Jakim faz já tanto tempo que se me confunde nos
cafundós da memória.
Quando foi também não interessa para o caso que aqui me
traz.
O que deveras importa é que desenvolvemos uma amizade e
durante anos uma constância feita de cumplicidades, éramos o que se diz unha
com carne, de tal forma que pelos cafés e tabernas de Portalegre não poucos
eram os que nos faziam de irmãos.
Agora que já sabem que conheci o rapaz em Portalegre, saibam
também que eu andaria pelo 8º ou 9º anos do então chamado ensino unificado,
resquícios da Revolução de Abril e maneirismos de forma que não levaram a
nenhuma unidade e muito menos promoveram a igualdade, antes fizeram milagres
pelo seu oposto.
O que primeiro me chamou a atenção naquele zangalhão todo
gingão e garganeiro mas com um certo ar desprotegido, rodeado de garinas que
lhe acoitavam as bocas, na sala de convívio da escola industrial, foi a braçada
de livros que todos os dias ele transportava debaixo do braço.
Logo ali aprendi que trazer pelo menos um livro à mão foca
em nós a atenção do mulherio que se sente atraído pelo ar intelectual que o
livro confere ao seu portador.
Não sei bem como chegámos à fala, eu sempre tímido não me
devo ter atrevido a meter conversa e no meio escolar ele era um “winner” e eu
um genuíno “loser”. Deve ter sido motivado por algum livro, objeto que também a
mim já me atraía e, normalmente, quinzenalmente requisitados na biblioteca
ambulante Calouste Gulbenkian.
Sei é que estabelecido o contacto tornámos-nos inseparáveis
por amor aos livros que líamos e trocávamos entre nós e sobre eles falávamos.
Habitualmente, eu chegava mais cedo ao Café Facha e
habituei-me a reconhecer-lhe o ticataca das botas ortopédicas a calcorrear a
calçada.
Entre dois cafés púnhamos a converseta em dia e quando
resolvíamos fazer gazeta íamos até ao Café Central, nas manhãs gélidas de Janeiro
e Fevereiro mas de céu limpo e sol, abancávamos numa janela a dar para a rua e
deleitávamo-nos com o passear das cachopas afriorentadas enquanto nós, gatos ao
sol, espreguiçávamos. Nos dias sem sol, íamos até ao Café Alentejano onde
sempre nos podíamos refastelar nos antigos bancos corridos com ar de sofás. As
tardes, essas eram certinhas, passadas no Tarro a olhar o jardim ou quando
havia disponibilidade financeira em fartas comezainas e ainda mais bem regadas
a tintol no Marchão, David ou Escondidinho.
Destas cumplicidades nasceu o momento alto das nossas vidas
de estudantes: o manifesto anti-Relvas, baseado no original do mestre Almada,
bandarilhámos com categoria um sujeito sem categoria que fez sua vida como
professor. A demonstrar o que digo, ainda hoje quando passa por mim no Rossio,
seus olhos contorcem-se num esgar de ódio, quando lerpar que a terra lhe seja
leve.
Destes tempos remonta ainda a nossa militância política, a
qual por toparmos muito bem os desígnios do PCP e melhor ainda os dos
mariquinhas pé de salsa do PS, PPD e CDS, optámos pela UDP, em Portalegre
éramos 3 os militantes, ainda assim, desabrochámos um comunicado dos estudantes
em solidariedade com os trabalhadores em greve da Finicisa, o qual nós próprios
distribuímos à porta da fábrica, o que fez com que esses trabalhadores
moralizados pelo comunicado cumprissem mais um dia de greve e nos tivessem pago
uns valentes bagaços, no seu bar de convívio.
Nesse dia fomos a formiguinha ao contrário no carreiro mas
que por breves instantes faz mudar a direção deste.
Ela era a nossa conselheira na sempre difícil passagem da
adolescência à idade adulta. Contava-nos histórias populares, aconchegava-nos
os estômagos em dias de ressaca, com os seus pratos da tradição alentejana,
frugais mas apetitosos.
Mas o interesse comum era a literatura, ler muito e tentar
escrever mais. Líamos tudo o que nos vinha à mão. Filosofia, psicanálise,
política, mas acima de tudo, poesia, contos, romances, os surrealistas
portugueses, o movimento Dada e muito policial, ao contrário de mim, o Jakim
também devorava ficção científica, havia de se tornar especialista na área.
Dos autores, recordo-me sobretudo de Marx, Engels, Lenine, Trotsky,
Che Guevara, Fidel, todos sem relevância para nós, ao contrário de Sartre, Boris
Vian, Marguerite Yourcenar, Borges, Arrabal, todos os poetas e mais algum.
Convergíamos e divergíamos conforme o autor ou o momento,
mas penso não errar que de todos aqueles em que mais fomos unânimes foram
afinal Fernão Lopes, Gil Vicente, Bocage, Herculano, Eça, sobre todos, Camilo,
mais Camões que Pessoa e muito pouco Régio, o que em Portalegre era quase
sacrílego, e no topo da pirâmide os contos de Trindade Coelho, Branquinho da Fonseca
e lá no cimo, tal estrela brilhante o espantoso “Romance da Raposa”, esse
romance quase juvenil ou para a infância, obra fabulástica do grande mestre Aquilino.
Ao fim e ao cabo, continuamos dois salta-pocinhas entre as
borrascas da vida, dizendo “o que disse Molero” e falando como só “assim falava
Zaratustra”.
Obras que lhe fortaleceram a imagética literária portuguesa
no qual fundou um domínio manuelino e único da língua portuguesa que iria ao
longo dos textos produzidos apurando numa linguagem e estilo próprios e únicos
na literatura portuguesa, criando o seu estilo inconfundível de escrever e
contar histórias.
A partir de determinada altura, apenas o conseguia ir
acompanhando nas leituras, pois na escrita, ele começou a escrever cada vez
mais e cada vez melhor.
Estava possesso pelo puro deleite de escrever
compulsivamente.
Foi aqui que os trilhos da vida nos separaram fisicamente,
mantendo a amizade, troca de leitura e sobretudo de escrituras.
Ambos saímos da órbita portalegrense quase na mesma altura,
meados finais de 1989, eu para Macau recompondo a minha carreira de professor
e, sem o saber na altura, comprometer definitivamente as aspirações literárias.
O Jakim, sem dizer nada, já na altura estava ciente que não
podemos vender a alma ao diabo, ao contrário de mim, mudou-se para as Caldas da
Rainha e por lá deu continuidade à sua verve literária e refinou ainda mais o
seu estilo e vocabulário conseguindo sintetizar nas influências clássicas um
modo de fazer, de escrever, de libertar as suas pulsões literárias num voo
livre de formas, frases e temas hodiernos, ou mesmo, “avant le temps”.
Para as editoras, parece haver escritores que de tão prenhes
de qualidade, para elas tornam-se impublicáveis. Com o que passa o jakim muito
bem, pois com a evolução informática ele escreve cada vez mais e com a ajuda do
computador, da impressora e da fotocópia, lá vai publicando com arrojo,
satisfação e desfaçatez as suas brochuras cheias da arte de bem escrever em
toda a linha montando qualquer égua, com ou sem sela, e as vai espalhando pelos
amigos, em Portalegre e por todo o mundo, pois a escrita do Jakim já se tornou
universal.
E às editoras diz nada, ou rindo às gargalhadas faz-lhes o
gesto habitual do Zé Povinho, manda-os à fava. Ainda por cima tem tomates, o
gajo.
E ainda pode glosar: escritor, eu? Não, isso é o José Rodrigues
dos Santos. Eu não passo de simples escriba. (A frase é minha mas ajusta-se).
De Joaquim Castanho li:
XIV Contos Disparates;
A Carta Esquecida e outros contos;
O Escriba e as Bonecas;
Expectativa e outros milagres;
Euclasia (poemas)
E poemas, muitos poemas, sendo que em minha opinião o Jakim
é um excelente prosador mas um poeta que apenas consegue esse nível em poemas
raros, nos demais é apenas aceitável, mas esta é a minha opinião.
Jaime Crespo