23.12.13

CRÓNICAS DO REGABOFE (10): O escriba

 Conheci o Jakim faz já tanto tempo que se me confunde nos cafundós da memória.
Quando foi também não interessa para o caso que aqui me traz.
O que deveras importa é que desenvolvemos uma amizade e durante anos uma constância feita de cumplicidades, éramos o que se diz unha com carne, de tal forma que pelos cafés e tabernas de Portalegre não poucos eram os que nos faziam de irmãos.
Agora que já sabem que conheci o rapaz em Portalegre, saibam também que eu andaria pelo 8º ou 9º anos do então chamado ensino unificado, resquícios da Revolução de Abril e maneirismos de forma que não levaram a nenhuma unidade e muito menos promoveram a igualdade, antes fizeram milagres pelo seu oposto.
O que primeiro me chamou a atenção naquele zangalhão todo gingão e garganeiro mas com um certo ar desprotegido, rodeado de garinas que lhe acoitavam as bocas, na sala de convívio da escola industrial, foi a braçada de livros que todos os dias ele transportava debaixo do braço.
Logo ali aprendi que trazer pelo menos um livro à mão foca em nós a atenção do mulherio que se sente atraído pelo ar intelectual que o livro confere ao seu portador.
Não sei bem como chegámos à fala, eu sempre tímido não me devo ter atrevido a meter conversa e no meio escolar ele era um “winner” e eu um genuíno “loser”. Deve ter sido motivado por algum livro, objeto que também a mim já me atraía e, normalmente, quinzenalmente requisitados na biblioteca ambulante Calouste Gulbenkian.
Sei é que estabelecido o contacto tornámos-nos inseparáveis por amor aos livros que líamos e trocávamos entre nós e sobre eles falávamos.
Habitualmente, eu chegava mais cedo ao Café Facha e habituei-me a reconhecer-lhe o ticataca das botas ortopédicas a calcorrear a calçada.
Entre dois cafés púnhamos a converseta em dia e quando resolvíamos fazer gazeta íamos até ao Café Central, nas manhãs gélidas de Janeiro e Fevereiro mas de céu limpo e sol, abancávamos numa janela a dar para a rua e deleitávamo-nos com o passear das cachopas afriorentadas enquanto nós, gatos ao sol, espreguiçávamos. Nos dias sem sol, íamos até ao Café Alentejano onde sempre nos podíamos refastelar nos antigos bancos corridos com ar de sofás. As tardes, essas eram certinhas, passadas no Tarro a olhar o jardim ou quando havia disponibilidade financeira em fartas comezainas e ainda mais bem regadas a tintol no Marchão, David ou Escondidinho.
Destas cumplicidades nasceu o momento alto das nossas vidas de estudantes: o manifesto anti-Relvas, baseado no original do mestre Almada, bandarilhámos com categoria um sujeito sem categoria que fez sua vida como professor. A demonstrar o que digo, ainda hoje quando passa por mim no Rossio, seus olhos contorcem-se num esgar de ódio, quando lerpar que a terra lhe seja leve.
Destes tempos remonta ainda a nossa militância política, a qual por toparmos muito bem os desígnios do PCP e melhor ainda os dos mariquinhas pé de salsa do PS, PPD e CDS, optámos pela UDP, em Portalegre éramos 3 os militantes, ainda assim, desabrochámos um comunicado dos estudantes em solidariedade com os trabalhadores em greve da Finicisa, o qual nós próprios distribuímos à porta da fábrica, o que fez com que esses trabalhadores moralizados pelo comunicado cumprissem mais um dia de greve e nos tivessem pago uns valentes bagaços, no seu bar de convívio.
Nesse dia fomos a formiguinha ao contrário no carreiro mas que por breves instantes faz mudar a direção deste.
Nestes tempos, o nosso solstício de verão, apesar de estar já a viver o seu equinócio do Outono, era a avó do Jakim que se havia de tornar avó de ambos.
Ela era a nossa conselheira na sempre difícil passagem da adolescência à idade adulta. Contava-nos histórias populares, aconchegava-nos os estômagos em dias de ressaca, com os seus pratos da tradição alentejana, frugais mas apetitosos.
Mas o interesse comum era a literatura, ler muito e tentar escrever mais. Líamos tudo o que nos vinha à mão. Filosofia, psicanálise, política, mas acima de tudo, poesia, contos, romances, os surrealistas portugueses, o movimento Dada e muito policial, ao contrário de mim, o Jakim também devorava ficção científica, havia de se tornar especialista na área.
Dos autores, recordo-me sobretudo de Marx, Engels, Lenine, Trotsky, Che Guevara, Fidel, todos sem relevância para nós, ao contrário de Sartre, Boris Vian, Marguerite Yourcenar, Borges, Arrabal, todos os poetas e mais algum.
Convergíamos e divergíamos conforme o autor ou o momento, mas penso não errar que de todos aqueles em que mais fomos unânimes foram afinal Fernão Lopes, Gil Vicente, Bocage, Herculano, Eça, sobre todos, Camilo, mais Camões que Pessoa e muito pouco Régio, o que em Portalegre era quase sacrílego, e no topo da pirâmide os contos de Trindade Coelho, Branquinho da Fonseca e lá no cimo, tal estrela brilhante o espantoso “Romance da Raposa”, esse romance quase juvenil ou para a infância, obra fabulástica do grande mestre Aquilino.

Ao fim e ao cabo, continuamos dois salta-pocinhas entre as borrascas da vida, dizendo “o que disse Molero” e falando como só “assim falava Zaratustra”.
Obras que lhe fortaleceram a imagética literária portuguesa no qual fundou um domínio manuelino e único da língua portuguesa que iria ao longo dos textos produzidos apurando numa linguagem e estilo próprios e únicos na literatura portuguesa, criando o seu estilo inconfundível de escrever e contar histórias. 
A partir de determinada altura, apenas o conseguia ir acompanhando nas leituras, pois na escrita, ele começou a escrever cada vez mais e cada vez melhor.
Estava possesso pelo puro deleite de escrever compulsivamente.
Foi aqui que os trilhos da vida nos separaram fisicamente, mantendo a amizade, troca de leitura e sobretudo de escrituras.
Ambos saímos da órbita portalegrense quase na mesma altura, meados finais de 1989, eu para Macau recompondo a minha carreira de professor e, sem o saber na altura, comprometer definitivamente as aspirações literárias.
O Jakim, sem dizer nada, já na altura estava ciente que não podemos vender a alma ao diabo, ao contrário de mim, mudou-se para as Caldas da Rainha e por lá deu continuidade à sua verve literária e refinou ainda mais o seu estilo e vocabulário conseguindo sintetizar nas influências clássicas um modo de fazer, de escrever, de libertar as suas pulsões literárias num voo livre de formas, frases e temas hodiernos, ou mesmo, “avant le temps”.
Para as editoras, parece haver escritores que de tão prenhes de qualidade, para elas tornam-se impublicáveis. Com o que passa o jakim muito bem, pois com a evolução informática ele escreve cada vez mais e com a ajuda do computador, da impressora e da fotocópia, lá vai publicando com arrojo, satisfação e desfaçatez as suas brochuras cheias da arte de bem escrever em toda a linha montando qualquer égua, com ou sem sela, e as vai espalhando pelos amigos, em Portalegre e por todo o mundo, pois a escrita do Jakim já se tornou universal.
E às editoras diz nada, ou rindo às gargalhadas faz-lhes o gesto habitual do Zé Povinho, manda-os à fava. Ainda por cima tem tomates, o gajo.
E ainda pode glosar: escritor, eu? Não, isso é o José Rodrigues dos Santos. Eu não passo de simples escriba. (A frase é minha mas ajusta-se).
De Joaquim Castanho li:
XIV Contos Disparates;
A Carta Esquecida e outros contos;
O Escriba e as Bonecas;
Expectativa e outros milagres;
Euclasia (poemas)
E poemas, muitos poemas, sendo que em minha opinião o Jakim é um excelente prosador mas um poeta que apenas consegue esse nível em poemas raros, nos demais é apenas aceitável, mas esta é a minha opinião.
Jaime Crespo