Ora cá temos o segundo romance de Rui Cardoso Martins, o qual constitui
quer do ponto de vista meramente lúdico do leitor, quer ainda como objeto
artístico passível de uma análise crítica mais exaustiva, pois ao adicionar-se
ao seu primeiro romance, o gostoso "E se eu gostasse muito de
morrer", fornece-nos já um naipe interessante das linhas de força e dos
rumos estéticos que Rui Martins pretende trilhar.
Tenho assim matéria quanto baste, para uma análise, ainda que ligeira,
sobre os passos formais, ideológicos e fundacionais da estética que nos é
servida pelo Rui.
Neste novo livro, Rui Martins volta a brindar-nos com um muito original Ulisses que ao longo do dia vai percorrendo a sua odisseia através de pequenas
peripécias e muito sentido de humor.
Se no primeiro romance, essa odisseia se vai desenvolvendo sob o pano de
fundo que lhe dá o cenário e ambiência, através da cidade e sociedade de Portalegre, uma cidade exótica alto-alentejana, entre serra e planície,
brindada por belos dias luminosos intercalados por outros cinzentos e chuvosos. Cidade de grandes contrastes: quentíssima de verão, friíssima de inverno. Agora,
neste seu "Deixem passar o homem invisível", o cenário é transportado
para a luminosa mas telúrica e tempestuosa Lisboa, apesar de tudo, cidade
mediterrânica.
Mas se no primeiro romance temos um Ulisses que passeia a sua juventude
pelo cinzentismo portalegrense, neste, Ulisses é um cego, apenas vê uma
estreita linha de luz, de meia-idade que se move pela luminosidade e
espertalhice lisboeta.
Definidas as normas formais, debrucemo-nos um pouco sobre a filiação
escritural do autor. apesar do apadrinhamento (no bom sentido) que foi
concedido por Lobo Antunes, é mais com a escrita de Dinis Machado do
"Molero" e com Mário Zambujal "Dos bons malandros" que eu
identifico as influências e afinidades literárias da escrita de Rui Martins
numa linha de escrita sempre prenhe de ironia e que vem de longa tradição na
escrita portuguesa.
Toda esta parafernália de instrumentos formais vão, em minha opinião,
permitir a que a criatividade do autor se revele e expanda através do que chamo
"estética da expiação", nestas odisseias protagonizadas pelo Ulisses
de Martins, o leitor fica sempre com a inquietação de que o Rui, através da sua
escrita anda em busca da expiar algo que é ao fim e ao cabo a pena que qualquer
humano paga pela sua existência.
Rui Cardoso Martins, deixa-me com água na boca para o que escreverá a seguir,
pois nestes dois romances sentimos um escritor em crescimento a cada parágrafo. Como o autor é possuidor de uma tremenda fluidez de escrita e de um domínio
técnico exuberante faz-nos cair, leitores, no engodo de pensarmos que estamos
perante uma obra fácil e linear, coisa que está longe de acontecer ou está
presente apenas como aparência, pois por detrás da aparente facilidade
encontramos uma obra cheia de complexidades e surpresas, tal como complexas e
surpreendentes são as nossas vidas.
Com estas duas obras, Rui Martins constrói um mosaico, tipo tabuleiro de
xadrez com quadradinhos a preto e branco, obrigando-nos a descobrir a
multiplicidade de possíveis jogadas.
Se no primeiro romance, Ulisses desenvolve e expia a sua existência
caminhando do cinzento de Portalegre até se encerrar numa escura cova do
cemitério da cidade, no novo romance, Ulisses perante a luminosidade de Lisboa
é ironicamente cego e acompanhado por uma infeliz criança vai fazer o seu
percurso através do esgoto da cidade até desembocar no lodaçal do Tejo. Diria
que estará a expiar a ousadia anterior de ter desafiado o destino ao
encerrar-se vivo num local destinado a guardar os mortos. Atenção que estou
apenas a tratar de uma observação crítica à obra de Rui Martins, pois os
romances são independentes bem como as personagens o são diversas, eu é que
estou a coser linhas entre elas.
Tal como no primeiro romance, em que Ulisses se encerra na cova com uma
mina na mão, também agora o final é apocalíptico, o Ulisses cego e o menino
infeliz vão desembocar no lodo do Tejo mas após um novo terramoto em Lisboa e
ali ficam abandonados à espera do tsunami que se adivinha.
Também aqui Rui Martins não concretiza o desfecho final preferindo
deixá-lo em aberto à interpretação do leitor, como se todos tenhamos uma
desgraça suspensa sobre as nossas cabeças mas esteja nas nossas mãos evitá-la,
por isso, apesar de tudo e depois de percorrida a via-sacra o autor ainda nos
deixa a réstia de esperança (a réstia de luz que o advogado cego ainda consegue
ver?) de que a remição é possível e a salvação (ou ressureição?) inerente a
ela.
Apesar de umas vidas desgraçadas, ainda assim, Rui Martins deixa-nos
respirar um pouco a utopia esperançosa da salvação. ou melhor, deixa o destino
de cada um nas suas próprias mãos e meus senhores e minhas senhoras façam o
favor de se servirem.
Jaime Crespo