O búzio tocou repetidas vezes. meia hora mais tarde, na
taberna do "ti Júlio", em frente à sacristia, foi feita a contagem do
pessoal e verificada a presença de elementos chave.
Pegámos em duas carretas de bois, mas puxadas e empurradas
pela rapaziada, até ao Azinhal, em busca de duas azinheiras e um sobreiro,
previamente pedidos ao dono, para o lume de Natal.
Naquela época ainda não havia moto-serras. Toca a puxar pelo
serrote e com machadadas desordenadas, lá fomos transformando as velhas árvores
secas em compridos toros que o lume havia de devorar.
O lume foi feito, aliás como sempre, no pequeno largo em
frente da igreja. Toda a tarde choveu e a noite previa-se ainda pior. Enquanto
as mulheres e as moças em casa faziam as filhós e as azevias, era tradição e
ainda é, os rapazes nascidos no mesmo ano juntarem-se, para à volta do
braseiro, assar qualquer coisa e aconchegar o estômago, pois as couves com o
azeite por cima, em plena juventude, com tripa de pato, já tinham ido barroca
abaixo e a noite era longa.
Uma linguiça e um copo de três vinham mesmo a calhar. Na
pequena taberna não se conseguia lá entrar, a chuva caía a cântaros, o lume
ia-se apagando lentamente e a barriga a dar horas. Podia lá ser uma noite tão
especial, depois de um esforço hérculeo, nem lume nem petisco.
Dê o mal por onde
der, sem petisco é que não pode ser - disse o magricela do "Espiga".
- Ir à procura de uma galinha, ou melhor ainda, de uma galo
é que vinha mesmo a calhar.
- Aqui bem perto está um na oliveira da Fonte da Bica -
disse o "Mangas". O pardal desapareceu da taberna, voltando pouco
depois com um enorme "galarous" debaixo do casaco.
Entretanto o lume tinha-se apagado por completo. Pela cabeça
de todos nós passou a mesma ideia. Só faltava mais esta! E agora?
O "Galhofas" encontrou a solução: - Calma,
rapaziada! Na casinha semi-abandonada onde a minha mãe guarda as velharias,
talvez a gente se desenrasque.
Foi uma excelente ideia, aprovada por unanimidade. Lá fomos
mais ligeiros que um sargento de infantaria. Mas um galo assado, mesmo grande como
era aquele, para tanta malta, com dezassete anos e cheios de apetite, não
chegava, só se o fizéssemos guisado, assim jáchegava.
As trempes, caçarola, lenha, batatas, cebolas, louro e
alhos, havia ali, mas o azeite, àquela hora da noite?
- Desse assunto trato eu! - disse o "Pardal",
convictamente. Passado pouco tempo apareceu com uma almotolia quase cheia. Foi
o delírio.
Já com a barriguinha cheia, o "Clarinete"
perguntou ao Pardal:
- Onde diabo foste tu arranjar o azeite que tem um gosto
esquisito?
- Á igreja - respondeu o Pardal.
- Não tens raça de vergonha! Roubar a igreja, vejam bem...
- Estás enganado, não roubei nada. Com o lume do Natal
apagado, vi que dentro da igreja havia uma luz muito fraquinha, quase a
apagar-se. Resolvi entrar e pôr mais azeite nas lamparinas, para que os santos
ficassem alumiados durante toda a noite.
O São Simão até sorriu e a Nossa Senhora de Fátima, com o
seu bondoso olhar, autorizou-me a trazer o resto, mas eu prometi-lhes que a
minha avó, amanhã, manda repor o que se gastar hoje. Afinal, não é ela quem lá
põe o azeite durante todo o ano? E este sempre foi bom ser gasto, pois já tem
alguns anos.
Entretanto, deixara de chover, a noite tornou-se mais
acolhedora, cada um foi à procura do "vale dos lençóis", já a pensar
no baile, à noite, no salão do "ti Reizinho".
José Hilário - 1 Dez. 2005