27.6.24

OPINIÃO: A mãe que embala o berço

Foram várias as vezes que os deputados da Comissão Parlamentar de Inquérito ao chamado caso das gémeas luso-brasileiras condescenderam perante a mãe das crianças. Que não era ela que estavam a julgar e que apenas pretendiam recolher informação que permitisse concluir se houve, ou não, um tratamento de favor dado às meninas que padecem de uma doença rara. De uma forma direta ou indireta, todos concordaram que, se fossem eles no lugar daquela mãe, também moveriam mundos e fundos para garantir o acesso a um medicamento que pudesse salvar os filhos.
O testemunho, por vezes doloroso, de Daniela Martins foi o de uma cuidadora sofrida, cansada e obstinada. O de uma mãe que agiu por instinto de sobrevivência das filhas, mas que foi apanhada em contradições. Desde logo a do absoluto desconhecimento de um contacto com Nuno Rebelo de Sousa, filho do presidente da República entretanto constituído arguido no processo. Daniela Martins, que assumiu aos deputados ter mentido nas declarações que prestou à Comunicação Social, foi confrontada com um email enviado à nora de Marcelo a agradecer os esforços efetuados pelo ex-secretário de Estado Lacerda Sales. O que faz supor que houve efetivamente um elo com o filho do presidente e com membros do Governo. Aliás, a mãe afirmou mesmo que, no hospital, todos “diziam que estava (lá) a mando do presidente”.
Já perdemos a conta às versões desencontradas deste caso. Da mãe, de Nuno Rebelo de Sousa, de Lacerda Sales, da secretária deste, dos médicos. Mas à medida que o nó se vai desfazendo, começa a tornar-se evidente que houve um esforço conjunto para encurtar etapas e permitir o acesso, via Serviço Nacional de Saúde, ao medicamento mais caro do Mundo. A extrema sensibilidade do caso, e o desconforto que nos causa ver uma mãe ser inquirida durante horas sobre os esforços que fez para salvar a vida das filhas, não deve desviar-nos do essencial, que é o objeto desta comissão: apurar se houve ou não favorecimento. Se houve, ou não, violação de leis ou regras deontológicas. E se houve, a mando de quem e com que contrapartidas?
* Pedro Ivo Carvalho - Jornal de Notícias - 22 junho, 2024