Uma corriqueira discussão em Lisboa, entre um motorista e um cliente, igual a tantas outras que ocorrem nas chegadas dos aeroportos, destapa uma realidade tenebrosa. Na recusa do motorista em pôr as malas na bagageira da viatura havia motivo impensável: na mala do carro encontrava-se o corpo de um homem, imigrante, que aí achou o quarto para descansar. Perante tamanha desumanidade, as imagens históricas dos arquivos da Revolução Industrial são meros postais ilustrados. Assistimos a uma nova escravatura. Não podemos continuar a fazer de conta, não podemos continuar a olhar para o lado.
De cada vez que há necessidade de pedir um transporte ou uma refeição, através de uma plataforma, devemos pensar com seriedade no ato, no gesto. O que está por trás destes novos serviços? Facilitam-nos a vida, é certo. Primeiro, à distância de um toque no ecrã do telemóvel, são práticos; segundo, mais baratos que os velhos táxis e têm fama de boa civilidade no relacionamento com os clientes. Tudo fatores determinantes na escolha de um serviço. Contudo, é bom lembrar: quem são os homens por detrás das plataformas? Os que enriquecem à conta da miséria de quem contratam sem os mais básicos direitos, mesmo sem rosto, sabemos a sua origem. E neste ponto cabe às autoridades, aos governos democráticos, tomar posição. Refiro-me aos motoristas que nos transportam e fazem da bagageira do automóvel precário tugúrio, aos rápidos estafetas da comida ao domicílio.
São os mesmos homens que dormem em movimentos, clandestinos, nas malas de carros. Não por capricho absurdo. Carecem de capacidade financeira para pagar as dívidas às organizações mafiosas que os trouxeram para a Europa e, muito menos, para garantir a renda de casa, onde possam viver com o mínimo de dignidade. É politicamente correto dizer-se que não compramos roupa de determinada marca porque é feita graças ao trabalho escravo na Índia ou na China - mas recusamos, como se nada fosse, ver os escravos modernos, povoando as ruas das nossas cidades.
* Paula Ferreira - Jornal de Notícias - 11 setembro,2023