29.3.23

OPINIÃO: Morrer disso não faz mal a ninguém

Escrevi sobre este tema a propósito das reedições de Roald Dahl, o escritor ingovernável a quem puseram um açaime - mais ou menos o mesmo que tapar o focinho a um tigre e deixar-lhe as garras de fora. Dispensava regressar tão depressa à medição dos mecanismos de calamento, mas agora foram pô-los na boca de Agatha Christie.
Alguns desvalorizam o movimento de reescrita. Os casos que por aí vemos serão epifenómenos insignificantes que servem para excitar reaccionários; e serão talvez um problema meramente económico, visto que as editoras e os detentores dos direitos, temendo o repúdio de uma pequeníssima fracção, vêem ganhos em aligeirar a escrita.
Acontece que os epifenómenos não existem sem o fenómeno ou sem a doença. É possível desvalorizar uma febre baixa, mas não quando o doente já anda padecido. E o doente aí está, com febres aqui e ali. Um dia bem pode morrer de gripe, que alguém dirá, como na anedota: "Ora, morrer disso não faz mal a ninguém."
Já no início dos anos 2000, Harold Bloom alertava para o problema da mesa e do carpinteiro. Ao contrário da escrita, ao comprar uma mesa, ninguém pretendia que o carpinteiro fosse um santo. Pretendia que a mesa fosse boa.
Mas quer-se cada vez mais que o escritor seja impoluto e identitariamente autêntico (daí pecar quando foge ao seu lugar de fala), e que cumpra também um caderno de encargos onde se inclui a representatividade certa, a linguagem sensível, e demais pares de botas. Quando acontece ao escritor o azar de ter morrido - e a maior parte dos grandes escritores já riparam - convém que se adapte as novas edições para maior suavidade.
Ser uma grande escritora não é acusação que se possa fazer a Agatha Christie. Ainda assim, criou grandes personagens, que são, quando muito, um breve reflexo dos tempos. Daí Poirot, nos anos 30, fazer comentários desagradáveis sobre etnias, entre muitas outras referências agora tesouradas.
Mais do que à própria escritora, esta mentalidade põe-nos a nós o açaime; a nós, livres para lermos o que quisermos: assim, mais do que o desrespeito evidente por quem escreveu, é um evidente desrespeito por quem lê.
Esta pulsão censória (vá, alteratória) não se explica apenas por parolice sentimental, embora também tenha disso. Explica-se por um movimento maior - dêem-lhe o nome que quiserem - que vê a linguagem como permanente jogo de poder. E por isso perigoso jogo de opressão e de violência que deve ser corrigido. Um movimento que desvaloriza o valor artístico porque, sendo a linguagem equivalente à realidade, é nela que se faz justiça. A escrita tem assim de ser edificante e só depois boa, só depois verdadeira literatura.
Dizem que a nossa pequenez nos torna mais lentos nestas tendências. Até pode ser, mas numa sociedade global lá fora é quase cá dentro. E as ideias, boas, más ou péssimas, sempre foram transversais, sempre atravessaram fronteiras - viessem elas a pé, a cavalo, de comboio, por telégrafo ou pela Internet.
* Afonso Reis Cabral - Escritor - in Jornal de Notícias - 29.3.2023