24.10.17

MEMÓRIA: Nisa Viva promove Passeio em Alpalhão (2006)

“À Descoberta do Património. Pelas vias da Lusitânia - Rumo ao Sul”
Manhã aprazível, luminosa.
O relógio de sol marcava 7 horas e meia mais um pedacinho de sombra. Havia três horas, mais um pouco, que o astro rei despontara lá longe nas cercanias de Marvão e Castelo de Vide.
24 de Junho. Dia de S. João, santo popular que terá pedido ao seu colega Pedro para que a manhã não fosse quente para os caminheiros.
Dezanove caminheiros meteram-se ao caminho da Marja Fanzira. Tomaram-na ali aos Sarangonheiros, à esquerda da estrada de quem vai de Alpalhão para Nisa, ao quilómetro 5, mais metro, menos metro. Rumaram para Sul.
Roupas leves, boa disposição. Alguns levavam bordão. Arêz 2006 se lia num, e Jacobeo 2004 noutro. Arez, antiga vila, é povoação do actual concelho de Nisa. Jacobeo é uma alusão às peregrinações a Santiago de Compostela quando a festividade do apóstolo Tiago, que é a 25 de Julho, coincide com Domingo. Se quiser pode confirmar: 25 de Julho de 2004 foi Domingo e o próximo Jacobeo será em 2010.
Se voltassem atrás 800, 700 anos, talvez se cruzassem com peregrinos que seguiriam para Norte, para Compostela, lá longe em terras do antigo reino de Leão, para o sepulcro de Santiago, santo que tem no céu a sua estrada – Estrada de Santiago (Via Láctea) - para que os devotos, cá na terra, se não percam, nos seus Caminhos de Santiago, e, entre outros, aqui à Margem Fanzira, Vereda da Sardinheira ou Caminho Sardinheiro,
Aqueles seguiriam para cumprir promessas ao evangelizador da Hispânia, agradecer graças divinas, dar, lá na catedral, a marradinha. Teriam largos e longos dias pela frente. Estes, numa manhã, sem pressas nem correrias, iam para combater o stress, contemplar a natureza, conhecer património, paisagens, fauna, flora, para o convívio. Respondiam ao convite de Nisa Viva – Associação dos naturais e amigos do Município de Nisa, que em cartaz anunciara “À Descoberta do Património. Pelas vias da Lusitânia - Rumo ao Sul”.
E à margem esquerda da Margem, que corria entre paredes de pedra tosca, aos Rombeiros, viram sepultura escavada na rocha a lembrar que há um milhar de anos, mais coisa, menos coisa, ali sepultaram alguém que não deixara registo escrito e a lembrar que, naqueles tempos, aquelas paragens eram habitadas, como já o tinham sido há quatro, cinco mil anos pelos homens que ergueram, ali perto aos Sarangonheiros e lá mais adiante ao S. Gens, algumas antas. Uma fonte, no caminho, terá enchido dezenas, centenas de cabaças de pastores e peregrinos, mas que os caminheiros só a admiraram já que, prevenidos, levavam água engarrafada em plásticos, sabe Deus e o rótulo onde.
Campos desarborizados, de pastagem. Terão sido estes os campos de pastos comuns para gados dos antigos concelhos de Nisa e Alpalhão? Terão sido estes campos que em meados do séc. XVIII, quando o arame farpado, agora ali estendido, não definia nem limitava espaços, originaram desavenças entre as gentes de Alpalhão e de Nisa, desavenças que subiram a Lisboa e se resolveram a contento dos primeiros?
Entre giestas e codessos, apontaram a direcção para pontões, obras da engenharia local, quando a pedra era cortada à mão, pontões na Ribeira do Figueiró e no afluente Mourela. Uns largos, outros estreitos, todos sem parapeitos, mas todos em matéria-prima da região, do mesmo granito que hoje leva longe o nome de Alpalhão e dá pão a muita gente. E num, construído nos campos João Viegas, o grupo posou para a fotografia.
Ali jazem esquecidos, sem préstimo, se, assim, o entenderem.
Ali esquecidos, cumprida a missão para a qual nasceram há centenas de anos, fazer a pé enxuto a ligação entre margens, aguardam, hoje, os roteiros, a publicidade turística, as informações, para serem admirados contemplados, já que mais não podem dar. Assim o queiram os homens de hoje.
Alguns caminhantes, subindo com alegria, passaram por baixo de pontões que para ali estão, passaram por vãos, falsos arcos, arcos rectos ou lá como lhe queiram chamar. Mas, descendo de enxurrada, não passarão na próxima invernia as águas se alguns vãos não forem desimpedidos dos inúmeros ramos que fazem barragem. Assim começa a ruína do nosso património. Conscientes ficaram os que ali estavam à torreira do Sol. O que dirão e farão os do ar condicionado? Fica o alerta.
A Ribeira, da qual se diz “os peixes do Figueiró quem os apanha come-os só”, já não corria, nas planuras do Carvalhal.
Mas corriam loucas as vacas-louras. Mas que diacho! Quem deu nome a estes bichos, minúsculos insectos comparados com as vacas que ali pastavam? E por que loura se o comprido corpo de preto pintado tem listras encarnadas de atravessado?
Passagem de peregrinos nos tempos antigos onde alguns foram violentados por vaqueiros da região. Coisa forte que originou queixa ao rei.
Terras de lavoura!
Caminhos importantes que os franceses estudaram, mas que não vieram a utilizar aquando das invasões que fizeram em 1807/11.
Marcos marcam, em alinhamento no terreno, divisões administrativas de concelhos - Nisa, Castelo de Vide – e de freguesias - Alpalhão, Espírito Santo, S. João.
Couto da Figueirinha de eucaliptos está hoje arborizado.
Caminhos murados de pedra. Sobreiros mortos, em pé. Gado bravo pastava.
Ribeiro do Castelo, Fonte Velha. Terras de muita água, terras ricas que deram muita batata, azeite e pão.
E o passeio pedestre terminou, sem martírio, ao Mártir Santo, à ermida de S. Sebastião, séc. XVI/XVII, cuja porta aberta dá vistas ao martirizado, quase desnudo, para Alpalhão, e onde os ex-votos, em cera, lembram que o moço proprietário ajuda aqueles que a ele recorrem em horas de aflição.
Era, pelo Sol, uma hora para o meio-dia. Em outros tempos já se tinha almoçado e já se pensava no jantar e na sesta, que a dona Rosa na primeira quinta-feira de Maio trouxera a Alpalhão.
O retempero das forças foi, depois de visita ao Museu da Misericórdia de Alpalhão, nas antigas instalações desta irmandade.
As gentes de Alpalhão sabem receber - receber bem as pessoas - e dar - dar da sua alegria, da sua companhia e do seu farnel. Não há como agradecer!
José Dinis Murta in "Jornal de Nisa" nº211 - Julho 2006