Em 1989 houve uma guerra no vale do Lila, em Valpaços. Centenas
de pessoas juntaram-se para destruir 200 hectares de
eucaliptal, com medo que as árvores lhes roubassem a água e trouxessem o fogo.
A polícia carregou sobre a população, mas o povo não se demoveu.
A 31 de março de 1989 o povo de Valpaços invadiu uma quinta
no vale do Lila para arrancar os 200 hectares de eucalipto que a Soporcel tinha
plantado na região. [Arquivo JN]
«Foi o nosso 25 de Abril», diz Maria João Sousa, que tinha
15 anos quando a revolução chegou à sua terra. No dia 31 de março de 1989, a rebate do sino, 800
pessoas juntaram-se na Veiga do Lila, uma pequena aldeia de Valpaços, e
protagonizaram um dos maiores protestos ambientais que alguma vez aconteceram
em Portugal.
A ação fora concertada entre sete ou oito povoações de um
escondidíssimo vale transmontano, e depois juntaram-se ecologistas do Porto e
de Bragança à causa. Numa tarde de domingo, largaram todos para destruir os 200 hectares de
eucalipto que uma empresa de celulose andava a plantar na quinta do Ermeiro, a
maior propiedade agrícola da região.
À sua espera tinham a GNR, duas centenas de agentes.
Formavam uma primeira barreira com o objetivo de impedir o povo de arrancar os
pés das árvores, mas eram poucos para uma revolta tão grande.
A polícia respondeu com uma carga à população, mas
revelou-se incapaz de travar os avanços de 800 populares sobre a propriedade.
[Arquivo JN]
«Naquele dia ninguém sentia medo. Eles atiravam tiros para o
ar e parecia que tínhamos uma força qualquer a fazer-nos avançar», lembra Maria
João Sousa.
Maria João, que nesse dia usava uma camisola vermelha
impressa com a figura do Rato Mickey, nem deu pelo polícia que lhe agarrou no
braço. «Ide para casa ver os desenhos animados», atirou-lhe, mas a rapariga
restaurou a liberdade de movimentos com um safanão: «Estava tão convicta que
não sentia medo nenhum. Naquele dia ninguém sentia medo nenhum. Eles atiravam
tiros para o ar e parecia que tínhamos uma força qualquer a fazer-nos avançar.»
A tensão subiria de tom ao longo da tarde. «Houve ali uma
altura em que pensei que as coisas podiam correr para o torto», diz agora
António Morais, o cabecilha dos protestos. Havia agentes de Trás os Montes
inteiros, da Régua e de Chaves, de Vila Real e Mirandela.
Mas também lá estava a imprensa, e ainda hoje o homem
acredita que foi por isso que a violência não escalou mais. Algumas cargas,
pedrada de um lado, cacetadas do outro, mas nada que conseguisse calar um coro
de homens e mulheres, canalha e velharia: «Oliveiras sim, eucaliptos não».
«Não queríamos arder aqui todos»
A guerra tinha começado a ser preparada um par de meses
antes, quando António Morais, proprietário de vários hectares de olival no
Lila, percebeu que uma empresa subsidiária da Soporcel se preparava para
substituir 200 hectares
de oliveiras por eucaliptal para a indústria do papel. «Tinham recebido fundos
perdidos do Estado para reflorestar o vale sem sequer consultarem a população»,
revolta-se ainda, 28 anos depois.
«Nessa altura o ministério da agricultura defendia com unhas
e dentes a plantação de eucalipto.» Álvaro Barreto, titular da pasta, fora anos
antes presidente do conselho de administração da Soporcel e tornaria ao cargo
em 1990, pouco depois das gentes de Valpaços lhe fazerem frente.
António Morais foi o cabecilha dos protestos. Percorrendo as
aldeias depois da missa foi convencendo o povo que o lucro fácil trairia
prejuízos a médio prazo.
«A tese dominante dos governos de Cavaco Silva era que urgia
substituir o minifúndio e a agricultura de subsistência por monoculturas mais
rentáveis, era preciso rentabilizar a floresta em grande escala», diz António
Morais. O eucalipto adivinhava-se uma solução fácil.
Crescia rápido e tinha boas margens de lucro. Portugal,
aliás, ganharia em poucos anos um papel de destaque na indústria de celulose e
os pequenos proprietários poderiam resolver muitos problemas de insolvência
abastecendo as grandes empresas com uma floresta renovada. A teoria acabaria
por vingar em todo o país, sobretudo no interior centro e norte. Mas não em
Valpaços.
«Numa região onde a água é tudo menos abundante, teríamos
[por causa do eucalipto] problemas de viabilidade das outras culturas», diz
António Morais.
«Comecei a ler coisas e percebi que o eucalipto nos traria
grandes problemas», continua António Morais. «Por um lado, numa região onde a
água é tudo menos abundante, teríamos grandes problemas de viabilidade das
outras culturas. Nomeadamente o olival, que sempre foi a riqueza deste povo. E
depois havia os incêndios, que eram o diabo. São árvores altamente combustíveis
e que atingem uma altura muito grande.»
Na terra quente transmontana o ano são oito meses de inverno
e quatro de inferno. O fogo, tinha ele a certeza, chegaria com aquele arvoredo.
Uns meses antes da guerra, começou a conversar sobre o seu
medo com algumas das mais relevantes personalidades do vale. Grandes
proprietários, políticos da terra, as famílias mais reconhecidas. «Lentamente
começou a formar-se um consenso de que o lucro fácil do eucalipto seria a médio
prazo a nossa desgraça. Não queríamos deixar secar a nossa terra. E não
queríamos arder aqui todos. Tínhamos de destruir aquele eucaliptal, custasse o
que custasse.»
Anatomia da conspiração
O núcleo duro estava formado, era constituído por dezena e
meia de agricultores capazes de mobilizar o resto do povo. «Aos domingos, íamos
às aldeias e no fim da missa explicávamos às pessoas o que podia acontecer à
nossa terra», lembra Natália Esteves, descendente de uma família de grandes
produtores de azeite feita de repente líder de protesto ecológico. «E também
íamos de casa em casa, esclarecer quem não tinha estado nas assembleias.»
Ao início houve renitência, a madeira valeria sempre mais do
que a azeitona, e a castanha ainda não rendia o que rende hoje. «Mas tentámos
sempre centrar a conversa no que aconteceria daí a uns anos, dizer que os
eucaliptos secariam os solos e o povo ficaria refém de uma única cultura, que
se alguma coisa corresse mal não teriam mais nada.»
João Sousa esteve na organização dos protestos à socapa, era
presidente da freguesia da Veiga do Lila. «Dizem que somos um povo sem educação
mas afinal nós é que estávamos certos.»
O que mais assustava aquela gente, no entanto, era o fogo.
«Onde há eucalipto, tudo arde. E então o povo já não chamava a árvore pelo
nome, mas por fósforos.» A primeira batalha estava ganha: tinham o apoio da
população.
João Sousa era nessa altura presidente da junta da Veiga do
Lila. «Oficialmente não podia dizer que era contra os eucaliptos, nem ir contra
a polícia. Mas, quando falava com as pessoas, dizia-lhes o que haviam de
fazer», conta agora com uma gargalhada e sem ponta de medo.
«Vê, nem um eucalipto plantado. E o nosso vale há mais de 30
anos que não arde», diz João de Sousa.
«Então se tínhamos o melhor azeite do país íamos dar cabo
dele para enriquecer uns ricalhaços de fora?» Tem 86 anos e uma destreza de 30,
hoje estuga o passo para mostrar a zona que podia ter sido caixa de fósforos.
«Vê, nem um eucalipto plantado. E o nosso vale há mais de 30 anos que não arde.
Se o povo não se tem unido hoje estávamos a viver a mesma desgraça que vimos
por esse país fora.»
Essa é aliás a conversa mais recorrente por estes dias no
vale do Lila. A tragédia florestal portuguesa dá a este povo a impressão que
eles sim, tinham razão há muitos anos, quando o governo e as autoridades lhes
diziam o contrário.
«Podem achar que somos gente do campo, sem educação nem
conhecimento, mas nós cá soubemos defender a nossa terra», diz o velhote.
«Temos chorado muito por esta gente que perdeu vidas e animais e casas. E há
uma coisa que o meu povo sabe: se temos deixado ficar os eucaliptos, também
hoje choraríamos pelos nossos.»
A guerra
Há uns dias que os combates tinham começado. Ataques
furtivos do povo, desorganizadamente, para arrancar pés de eucalipto nos
limites do Ermeiro. Duas semanas antes da guerra, no Domingo de Ramos, as
coisas aqueceram.
«Juntámos duas centenas de pessoas aqui destas aldeias e os
donos da empresa chamaram a GNR», lembra António Morais. «Quando eles chegaram
já tínhamos dado cabo de uns bons 50 hectares de eucaliptal.» Nesse dia não houve
confrontos, porque o povo fugiu. Mas anunciaram a alto e bom som que voltariam
depois da Páscoa.
Esse ataque tinha feito notícia no Jornal de Notícias e
trazido uma mão-cheia de jornalistas à terra, nomeadamente Miguel Sousa
Tavares, da RTP. «Percebi que as coisas estavam a tornar-se muito grandes e foi
então que contactei a Quercus. Precisávamos de ajuda.»
A 31 de março de 1989 o povo de Valpaços invadiu uma quinta
no vale do Lila para arrancar os 200 hectares de eucalipto que a Soporcel tinha
plantado na região. [Arquivo JN]
Do outro lado da linha atendeu Serafim Riem, que dirigia o
núcleo do Porto da organização ambientalista. O ecologista partiu imediatamente
para o terreno. Nesses dias ouviriam do parlamento em Lisboa várias palavras de
solidariedade. Sobretudo do PCP, d’Os Verdes e de um jovem deputado socialista
chamado José Sócrates.
Agora não valia a pena esconder mais nada. A 31 de março de
1989, domingo depois da Páscoa, o povo juntar-se-ia todo na Veiga do Lila para
dar cabo do eucaliptal que restasse. A aldeia enchera-se de jornalistas, havia
até um helicóptero a cobrir os acontecimentos do ar.
A direção nacional da Quercus demarcar-se-ia da organização
dos protestos através de um comunicado, mas os núcleos do Porto e Bragança
encheriam cada um o seu autocarro de ambientalistas carregados de cartazes. Às
duas da tarde o sino começou a tocar a rebate. Oito centenas de vozes entoavam
«oliveiras sim, eucaliptos não» e largaram por um caminho de terra batida para
a quinta do Ermeiro.
Numa hora, foram arrancados 180 hectares de
pequenas árvores. «Alguns gozavam com os agentes na cara e levaram umas
bastonadas», recorda Natália Esteves.
Não era preciso usar enchadas nem sacholas, os eucaliptos
tinham sido plantados há pouco tempo e arrancavam-se com as mãos. A polícia
tentava fazer uma linha de defesa, mas duas centenas de agentes não chegavam
para aquela gente toda.
Numa hora, foram arrancados 180 hectares de
pequenas árvores. «Alguns gozavam com os agentes na cara e levaram umas
bastonadas das boas», recorda Natália Esteves. Os que eram de perto diziam-lhes
assim: «Tendes razão, por isso vamos fingir que não vemos.» Viravam as costas e
o povo ia subindo o terreno.
Num instante, o casario da quinta tornava-se no último
reduto da investida. Uma dezena de guardas saíram a cavalo, era demonstração de
força mas não surtiu resultado. A Soporcel tinha construído socalcos para
plantar os eucaliptos e, agora, os animais não conseguiam descê-los.
«O povo ia atirando pedras aos guardas, houve um que acertou
no cavalo e mandou-o abaixo», diz João Morais. Foi nesse momento que entrou em
campo o corpo de intervenção, disposto a levar toda a gente pela frente. «Aí as
coisas podiam ter descambado definitivamente.»
Todos por um
A guarda especializada avançava agora colina abaixo com
escudos e capacetes. José Oliveira, um agricultor da pequena aldeia de Émeres,
tentou escapar pela lateral, mas foi logo caçado pela guarda. No bolso trazia
um revólver e foi isso que o tramou. «Levaram-no logo detido para dentro do
jipe por posse de arma ilegal», conta agora a sua viúva, Ester.
Aquela detenção marcaria o início do fim da guerra. «As
pessoas tinham recuado por causa do corpo de intervenção, mas quando se
aperceberam que um dos nossos estava preso começaram a gritar que não
arredariam pé enquanto ele não fosse solto», diz João Morais. Ester anui, «foi
o vale inteiro que salvou o meu homem.» Agora já não havia pedras, havia
gritos. Que libertassem o tio Zé e rápido.
Ester Oliveira viu o marido, José Oliveira, ser detido
durante os confrontos por posse de arma ilegal. «Foi o povo que o salvou por
dizer que não arredava pé enquanto ele não fosse libertado.»
Serafim Reim, o homem da Quercus, é que foi lá negociar a
libertação com os guardas. Sobravam menos de 20 hectares de
eucalipto, o povo deixá-los-ia em paz se soltassem o velhote. Uma hora depois,
houve consenso. Identificaram José Oliveira, caçaram-lhe a arma e mais tarde
levaram-no a tribunal, mas naquele dia saiu pelo seu pé para os braços da
mulher, e daí para casa.
António Morais, Natália Esteves, João Sousa e mais uma
dezena de organizadores do protesto também seriam chamados à barra da justiça,
um ano depois enfrentaram acusação de invasão de propriedade privada e foram
condenados com pena suspensa.
«Ainda vieram uns engenheiros da Soporcel dizer que
retirariam a queixa se nos comprometêssemos a não destruir uma nova plantação
de eucalipto. Disse-lhes que nem pensar, aqui nunca teríamos árvores dessas no
nosso vale.»
Nas noites seguintes arrancou-se à socapa quase tudo o que
faltava, ficaram apenas meia dúzia de hectares a rodear o casario da quinta,
mais passível de vigia. A Soporcel acabaria por desistir e vender a propriedade
e a família que a comprou, quando ousou confessar a Natália Esteves que
pensavam plantar eucaliptos, foram logo avisados: «Se os botais nós os
arrancamos.»
«A única maneira de travar os incêndios em Portugal é
reduzir o eucaliptal e substituí-lo pela floresta autóctone», diz o
ambientalista Serafim Riem.
Hoje, o Ermeiro é terra de nogueiras e amendoeiras,
oliveiras e pinho. Nunca ardeu. Serafim Riem, o ambientalista da Quercus, diz
que até hoje a guerra do povo de Valpaços é um marco, a maior ligação jamais
vista no país entre o mundo rural e o ativismo ecológico.
«A única maneira de travar os incêndios em Portugal é reduzir
drasticamente o eucaliptal e substituí-lo pela floresta autóctone, que não só
tem melhor imunidade ao fogo como gera uma riqueza mais diversificada para as
populações.»
Naquele 31 de março de 1989, o povo uniu-se e, diz agora,
salvou-se. «Nós é que tínhamos razão», repetem uma e outra vez, repetem todos.
Às seis da tarde, depois de José Oliveira ser libertado, um vale inteiro voltou
pelo mesmo caminho e juntou-se no principal largo de Veiga do Lila. Mataram-se
dois borregos e um leitão, abriram-se presuntos e deitaram-se alheiras à brasa,
houve até quem trouxesse uma pipa de vinho. A festa durou noite dentro e foi
maior do que qualquer romaria de Santa Bárbara.
À volta da fogueira acabariam por juntar-se também os
guardas que horas antes defendiam o Ermeiro. E ali ficaram a comer e beber,
vencedores e vencidos, que em Trás-os-Montes nunca se nega hospitalidade. Maria
João Sousa nunca tinha visto uma coisa daquelas, nem nunca voltaria a vê-la na
sua terra. Foi o 25 de Abril da sua gente. «Há lá coisa mais bonita do que uma
revolução.»
Texto de Ricardo J. Rodrigues | Fotografia de Rui Oliveira /
Global Imagens