Sim, é
possível: ainda há, em Portugal, quem morra sozinho e de frio. Rodeado de lixo.
No Dia Internacional dos Direitos Humanos. Manuel Escobar tinha 68 anos. Foi
notícia no JN em novembro, aquando de um apelo desesperado por um lugar de
acolhimento num lar. Voltou a ser notícia cerca de um mês depois, quando foi
encontrado pela GNR em casa, cheio de hematomas, em condições degradantes e
gelado. Acabaria por morrer com sinais de hipotermia no Hospital de Mirandela.
A lição, a haver alguma lição a reter, é a de que todos sabiam que isto podia
acontecer, mas ninguém foi capaz de evitar que isto acontecesse. É uma lição em
forma de novelo: tão enrolada que dificilmente se desatará o nó da responsabilidade.
Há anos
que somos confrontados com o envelhecimento do país. Com o abandono transversal
a tantas almas e geografias. Nas cidades e nas aldeias, os velhos adquirem a
condição de corpos lentos e carentes. Estorvos. É, por isso, mais fácil esquecermo-nos
que existem."Acabaram por desistir dele por ser uma pessoa difícil",
explica Berta Nunes, presidente da Câmara de Alfândega da Fé. Manuel Escobar
viveu e morreu no coração de uma tempestade perfeita.
Dono de
uma personalidade conflituosa, pediu, durante meses, para que o
institucionalizassem num lar. Assim aconteceu. A Segurança Social
providenciou-lhe um lugar em
Mirandela. De onde terá saído por vontade própria. Foi para
casa. Recusou uma família de acolhimento. A de sangue estava longe: dois filhos
emigrados e desempregados. Apenas um sobrinho mais perto. Não suficientemente.
Durante
meses, assistentes sociais da Câmara de Alfândega da Fé procuraram uma solução
junto da Segurança Social. "Não havia família de acolhimento nem vaga
social para sexo masculino no distrito de Bragança", foi a resposta de
protocolo. Nos dias de frio, Manuel dormia no quartel dos bombeiros. Porque lhe
tinham cortado a luz em
casa. Uma entidade parceira da Segurança Social ficou
responsável por visitas diárias, que contemplavam "alimentação, higiene
habitacional e tratamento de roupa". Mas as últimas imagens da casa onde
ficou esquecido não coincidem com nenhum compromisso de proximidade.
Manuel
estava sinalizado pela família, pelos vizinhos, pela GNR e pela Segurança Social.
Mas morreu sozinho, de frio, num país que desistiu dele por não querer ver os
sinais.
Em 2016.
Pedro Ivo Carvalho in "Jornal de Notícias" - 14/12/2016