A jornalista Vanessa Fidalgo publicou no passado dia 2 no "Correio da Manhã" uma saborosa crónica sobre uma das lendas e tradições de Amieira: a Procissão dos Terceiro, já aqui publicada no Portal.
Pela divulgação que o texto faz de Amieira do Tejo e da região, reproduzimo-lo uma vez mais, agora na versão (adaptação) de Vanessa Fidalgo.
Na Amieira do Tejo, pitoresca
aldeia do distrito de Portalegre, são famosas as tropelias das bruxas e das
mouras encantadas, mas também se conta uma curiosa história sobre uma procissão
dos terceiros. Uns conseguiam vê-la, outros ouviam-na apenas e outros tantos
nunca tinham visto nem ouvido nada e, portanto, eram os que mais se fartavam de
falar sobre o assunto. Contavam para quem os quisesse ouvir que a certas horas
da noite, pela Quaresma, quem se chegasse à janela e tentasse avistar o
horizonte para os lados da calçada de São Pedro, corria o sério risco de ver
uma tenebrosa procissão, encabeçada por sombras diáfanas ou até mesmo caveiras
encapuzadas. Naqueles súbitos momentos de encontro, as almas penadas desciam do
cemitério em fila indiana em direção à vila, espiar os pecados do mundo dos
vivos. Pois numa dessas estranhas noites, uma mulher que morava na rua do
Arrabalde levantou- -se mais cedo para pôr o pão a cozer e, sem querer, foi à
janela ver se o sol já lá vinha. Não o encontrou, mas deu de caras com a
procissão das almas... Não se espantou! Como era muito despachada até
aproveitou para resolver o problema que a apoquentava naquele momento: não
tinha lume para acender a lareira e por isso não hesitou em pedi-lo a um dos
mortos-vivos que carregavam as tochas.
O defunto encarou-a, espantado com
o desaforo. Suspirou num bafo podre e gelado, mas não se opôs. Entregou-lhe uma
vela acesa, pedindo-lhe apenas que a devolvesse no dia seguinte à mesma hora.
Mas ela, em vez de bater com a porta e dedicar-se à massa, deixou-se estar no
parapeito a roer as unhas e a ver as almas passar silenciosamente na sua
penitência errante. Mal amanheceu, correu para o mercado e contou a quem a quis
ouvir a maneira como tinha fintado o medo e até conversado com os fantasmas que
rondaram a porta. Na noite a seguir, porém, não perdeu pela demora. Quando foi
à cantareira buscar a vela para cumprir a prometida entrega até ia desmaiando
de susto! No lugar da vela estava a mão pálida e fria do diabo, que a agarrou
antes de ter tempo para fugir ou fazer qualquer outra coisa em legítima defesa!
Quem lhe falou depois foi o morto. Disse-lhe que deixasse de ser coscuvilheira
e que nunca mais se levantasse a meio da madrugada para ver quem passava na rua
a desoras, porque quem está está. E quem vai vai!
Vanessa Fidalgo - CM - |02.10.16