A proposta de revisão da legislação laboral apresentada pelo governo
está em consulta pública e deverá chegar à Assembleia da República depois do
verão. Para Garcia Pereira, especialista em Direito do Trabalho, o que está em
causa "não é uma mera reforma técnica", mas sim "uma declaração
de guerra aos trabalhadores, ao estilo do que foi feito em 2003" pelo
executivo liderado por Durão Barroso.
Para o advogado, o argumento repetido de que a legislação laboral portuguesa é demasiado rígida não tem fundamento. "É uma absurda falácia". "Temos, em matéria de despedimentos coletivos e por razões económicas, dos regimes mais flexíveis, fáceis de usar e baratos do mundo", afirma. "É mais fácil fazer um despedimento em Portugal do que na Alemanha. É facílimo forjar uma extinção do posto de trabalho em Portugal, muito mais fácil do que em Espanha, em França ou em Itália".
Ainda por cima, "como temos salários baixos e as indemnizações são
fixadas em função do salário base — continuamos a ter 14 dias de
remuneração-base por cada ano de antiguidade —, isto dá indemnizações
baixíssimas". Tudo agravado pelo "elevadíssimo grau de ineficácia das
normas laborais em Portugal", no topo das quais está a "dificuldade
de acesso à justiça por parte dos trabalhadores".
Garcia Pereira defende que qualquer reforma laboral séria teria de
passar também por uma reforma profunda da justiça do trabalho. "Hoje, o
acesso está fortemente condicionado pelo custo pornograficamente astronómico
das custas judiciais nas ações laborais", denuncia.
"Nas ações laborais, em particular nas de impugnação de despedimentos ou de situações de assédio — ou, já agora, em que estão em causa situações de despejos ou relativas a menores —, a justiça devia ser gratuita. Depois de em democracia, vergonha das vergonhas, se ter revogado a regra que existia no tempo do fascismo, em que nos processos laborais as custas eram metade do regime normal, hoje temos custas de tal maneira elevadas que muitos trabalhadores veem-se obrigados a abdicar dos seus direitos. E não me venham com o regime de apoio judiciário, que praticamente só se aplica aos indigentes".
A proposta, no entanto, não altera, por exemplo, "as fórmulas que
permitem transformar em rendimento bens que porventura a pessoa ainda tenha,
mas que não representam qualquer rendimento, como o carro, que leva a
considerar que o trabalhador tem condições de suportar despesas".
O jurista critica ainda a falta de formação especializada de muitos
juízes para lidarem com esta área específica. "A verdade material está a
ser substituída pela mera formalidade, e os poderes especiais conferidos ao
juiz na fase de produção de prova estão a ser ignorados".
Garcia Pereira aponta a contradição entre a proposta do governo e a realidade económica do país: "Em Portugal, 35% da economia é paralela, ou não declarada, segundo dados do Observatório da Economia da Faculdade do Porto. Para esses trabalhadores não há leis, não há tribunais, não há proteção, tudo se passa por baixo da mesa. É espantoso como se consegue pegar no Código do Trabalho e propor mais de cem alterações sem começar por refletir sobre este ponto", acusa.
"Temos um número gigante de falsos contratos de prestação de serviços, que encobrem verdadeiras relações de trabalho subordinado" e "nada é feito para enfrentar a realidade dos falsos recibos verdes ou da economia das plataformas digitais", mas não se fala do que é hoje a justiça labora.
E sublinha que o governo pretende mesmo recuar na legislação existente, apesar das diretivas europeias exigirem o contrário. "Alguns critérios do Código do Trabalho estão ultrapassados. A ideia de cumprimento de um horário rígido, da presença do trabalhador num determinado local, da exigência de uma chefia direta, fisicamente presente, dando ordens, está claramente ultrapassada face à nova realidade das relações de trabalho. Tem de se trabalhar muitas vezes por objetivos, por cumprimento de uma tarefa dentro de um prazo, muitas vezes a partir de casa ou doutro ponto qualquer".
Férias tiram margem de manobra a trabalhadores e sindicatos
Garcia Pereira identifica fortes paralelismos entre a proposta actual e
a reforma do Código do Trabalho de 2003: "O método é o mesmo. O governo
constitui uma task force centrada numa escola de pensamento neoliberal, com um
prazo muito curto para elaborar a proposta, e apresenta-a à entrada das férias
de verão, precisamente quando há menor capacidade de mobilização e resposta por
parte dos trabalhadores e dos sindicatos".
O jurista considera que os objetivos também são semelhantes:
"Pretende-se fragilizar a negociação coletiva, restringir o direito à
greve e individualizar ao máximo as relações de trabalho, produzindo um
desequilíbrio estrutural ainda maior a favor dos empregadores". Em última
instância, o que se está a fazer é a "liberalizar e embaratecer a
contratação precária, facilitar os despedimentos, aumentar os tempos de
trabalho e diminuir salários e pausas remuneradas".
E dá o exemplo de um "catálogo" de alterações no que diz respeito às prestações sociais: "Há um aperto significativo nas condições de acesso ao subsídio de desemprego, ao subsídio de doença, ao complemento solidário para idosos, entre outras prestações sociais".
Quanto ao direito à greve, Garcia Pereira considera que a proposta
atual representa uma tentativa clara de limitação. "A greve é um direito
fundamental. Não é absoluto — nenhum direito é —, mas é essencial para a
liberdade sindical. Sem greve, não há ação coletiva. E sem ação colectiva, o
trabalhador está entregue ao choque desigual de vontades no contrato
individual".
A exigência generalizada de serviços mínimos em todas as greves é vista
pelo advogado como uma tentativa de esvaziar esse direito. "O que está em
causa não é a razoabilidade da medida em si, mas a sua generalização e o seu
uso como ferramenta para impedir que a greve tenha efeito".
Para o advogado, a necessidade de articulação desse direito fundamental
com a salvaguarda de outros direitos fundamentais de igual grau está já
"acautelada na Constituição e não na lei ordinária".
Mas há também mudanças redundantes. É o caso da possibilidade de auto-declaração de doença para faltas até três dias, em substituição de atestado médico, desde que não ultrapasse as duas vezes por ano, sob compromisso de honra. Uma declaração falsa pode levar ao despedimento. "O que o governo fez foi apenas reforçar algo que já consta da lei: apresentar uma justificação fraudulenta já constitui justa causa de despedimento. A formulação foi apenas tornada mais explícita", diz.
Portugal tem em média mais dez dias de baixas médicas por trabalhador
do que a média dos países ricos. Para Garcia Pereira, "o número de horas e
os ritmos de trabalho a par de salários miseráveis" abrem a porta ao
"absentismo laboral". No entanto, lembra o advogado, não há nada de
novo quanto aos mecanismos de fiscalização.
O imbróglio dos tribunais e os anos de espera
No caso da função pública, outros assuntos mereciam ser discutidos,
como a digitalização de serviços e a distribuição de funcionários, onde estão a
mais e onde fazem falta. Garcia Pereira concorda que o mérito devia ser um
posto, não a idade. "O problema é que os métodos de avaliação, o exemplo
mais típico é o SIADAP [Sistema Integrado de Gestão e Avaliação do Desempenho
na Administração Pública], não oferecem nenhuma espécie de garantia de que o
que se esteja a apreciar seja o mérito e a competência".
Neste aspeto, o jurista critica "desde logo o sistema de notas, que considero inconstitucional". E lembra que foi professor durante 47 anos e meio e jamais aceitaria que lhe dissessem que não podia atribuir a um aluno mais do que xis de classificação. "É absurdo e resulta numa tendência para amalgamar as notas, contrariando a teoria de premiar o mérito e a competência". Em segundo lugar, "se os avaliadores não são eles próprios sujeitos a um mecanismo sério de avaliação, as avaliações que fazem facilmente se transformam em instrumentos de poder e de perseguição".
Com uma agravante, é que os tribunais competentes para apreciar e
decidir os conflitos desta natureza na administração pública "são um poço
sem fundo e sem grande cultura laboral, que são os tribunais
administrativos". O tempo médio de vida de um processo na primeira
instância em Lisboa é de 12 anos, revela. "Tenho processos com quase o
dobro desse tempo. Muitas vezes isto significa a inutilização, porque a pessoa
reforma-se ou falece antes de haver uma decisão". Seria outra área a
examinar.
Garcia Pereira concorda com a necessidade de aproximação do regime dos trabalhadores da administração pública do regime laboral privado (Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas e Código de Trabalho). No entanto, acredita que o objetivo "tem por trás uma agenda, que é a de poder aplicar aos trabalhadores da administração pública o regime de cessação do contrato de trabalho, designadamente os despedimentos coletivos por extinção do posto de trabalho", alerta.
A unificação dos regimes tem vindo a ser feita. Mas, para o advogado, o
Estado tem mantido o que lhe convém, ou seja, "o foro onde nada é
resolvido" em matéria de conflitos. Em países como a Itália também houve
uma aproximação dos regimes público e privado, "mas a competência para
julgar conflitos laborais passou para os tribunais que têm por vocação e
formação especializada, que são os tribunais do trabalho".
Outsourcing ilimitado e banco e horas individual, dois erros?
Sobre o recurso ilimitado a outsourcing: a lei proibia, nos despedimentos coletivos, a contratação nos 12 meses seguintes de trabalhadores para realizarem as mesmas tarefas, "um passo importante para acabar com manobras consistentes de substituir trabalhadores com um vínculo jurídico estável por trabalhadores precários, às vezes os mesmos".
"Para mim é muito claro que o governo decidiu proteger a Uber, a
Glovo e outras plataformas que nunca aceitaram bem que os vínculos com os seus
prestadores fossem reconhecidos como vínculos de trabalho. E, é preciso dizer
isto, Portugal era o único país da Europa onde não havia decisões judiciais a
reconhecer esses vínculos como vínculos de trabalho. Espanha, França, Itália,
Alemanha, Reino Unido, países nórdicos tinham decisões nesse sentido",
adianta Garcia Pereira.
O jurista cita um estudo do economista Eugénio Rosa, que demonstra que
para o mesmo posto de trabalho um trabalhador com um contrato a prazo ganha em
média 75% do que ganha um trabalhador com contrato permanente ou 55% a 60% se
estiver a recibos verdes, com a vantagem para a empresa de, neste caso, não ter
de pagar subsídios de férias nem de Natal ou quaisquer obrigações de formação
profissional, entre outras.
"O governo vai ao encontro das aspirações das grandes
multinacionais desse setor e liquida, na prática, o artigo que de certa forma
defendia esses trabalhadores e condena-os à precariedade. Isto, quanto a mim,
tem a ver com a aposta num modelo baseado em trabalho intensivo, de baixa
qualificação e baratinho", contesta o advogado.
"Voltámos a admitir que um dos fundamentos para a contratação a
termo seja a pessoa estar à procura do primeiro emprego, ou seja, um jovem que
nunca teve um emprego com carácter permanente pode ser contratado a prazo para
preencher um posto de trabalho que existe há 500 anos e que vai continuar a
existir nos próximos 500 anos. Se isto não é fomentar a precariedade, não sei
bem o que será", diz Garcia Pereira.
O banco de horas individual, que tinha sido revogado, regressa.
"Estou completamente contra essa retomada do regime de oito horas de
trabalho. O que não se quer compreender é que permitir que horas a mais sejam
compensadas por horas a menos significa, por exemplo, não pagar trabalho
extraordinário, isto é, permitir o abuso".
"Num mercado de trabalho com as características do português, com um número elevado de trabalhadores em situação de precariedade, remeter para o acordo individual a imposição de um regime bárbaro como este significa que, numa grande parte dos casos, os trabalhadores têm de optar entre recusar um abuso ou manter o emprego", conclui o advogado.
As alterações à legislação laboral estão em fase de negociação em sede
de concertação social. O documento ficará depois cerca de um mês em apreciação
pública, período durante o qual as organizações dos trabalhadores e dos
empregadores poderão apresentar sugestões, sem qualquer carácter vinculativo.
Depois de remetido à Presidência da República para promulgação, o presidente poderá pedir apreciação preventiva da constitucionalidade, mecanismo pelo qual o Tribunal Constitucional avalia, antes da entrada em vigor, a conformidade de normas com a Constituição, altura em que poderá ou não chumbar algumas medidas.
Isabel Tavares - 24noticias.sapo.pt11 ago 2025