2.4.23

OPINIÃO: Assético e fofinho

Há piadas que já não se podem fazer. Há roupas que já não se podem vestir. E há livros que já não se podem ler.
A naturalidade com que vamos aceitando sucessivos atos de censura cultural, motivados por pretensos ideais de igualdade que mais não são do que manifestações primárias de intolerância demasiadas vezes retiradas do contexto histórico, devia preocupar-nos. A Humanidade assética e fofinha que o Mundo ocidental está a impor às novas gerações existe apenas na cabeça de quem adotou essa agenda regeneradora como um mantra civilizacional.
Nos Estados Unidos, a Associação Americana de Bibliotecas para a Liberdade Intelectual chama-lhes grupos organizadores de censura. Assim, com esta solenidade. No ano passado, os pedidos para retirada de livros dos escaparates aumentaram consideravelmente. A grande maioria foi escrita por ou sobre membros da comunidade LGBTQIA+ e pessoas de cor. De todas as obras censuradas, três em cada quatro eram de ficção, sendo que quase metade para jovens adultos. Ou seja, o material sujeito a censura não se baseava em factos reais. Apenas no gosto. E na imposição do gosto de uma minoria a todos os outros.
Acontece que o Mundo não é assético nem fofinho. E os acontecimentos que nos precedem muito menos. Querer mudar o que fomos com os olhos do que somos não resulta apenas num revisionismo perigoso. Quando sujeitamos esta geração aos caprichos deste nivelamento cultural não estamos a promover a verdade, mas a mentira. A Humanidade, e a cultura dos povos, evolui nas imperfeições, nas diferenças, muitas vezes na desigualdade. E a literatura só faz sentido se acompanhar esse movimento, traduzindo as épocas. Reescrever os livros de Agatha Christie ou de Ian Fleming não é apenas uma ofensa às memórias de Hercule Poirot e de James Bond. É sobretudo um insulto à nossa inteligência coletiva.
* Pedro Ivo Carvalho in Jornal de Notícias - 1.4.2023