Ninguém se atreve a antecipar a dimensão da vaga de falências até ao final de 2020. Vai ser ela que irá determinar o nível de desemprego em 2020 e 2021.
Por pior que a pandemia continue a progredir (mais de nove milhões de pessoas infetadas), numa primeira vaga que ainda não esmoreceu mas que se estende pelo planeta, alguns títulos noticiosos sugeriram uma boa notícia: a economia mundial está a recuperar. Só que é mesmo melhor não deitar foguetes antes de tempo.
O reverso da medalha
A China terá exportado, em maio, só menos 3% do que no mesmo mês de 2019. Nos EUA, quando se esperava que o desemprego em maio alcançasse os 20%, desceu de 14,7% para 13,3%, com mais 2,7 milhões de novos empregos. A Amazon contratou 175 mil trabalhadores em março e abril. Em Espanha, a vice-primeira ministra, que é candidata ao Eurogrupo, anunciou que a recuperação já começou. Tudo isto parece impressionante, mas é uma ilusão.
A China expandiu a produção e exportação de alguns sectores industriais com nova procura durante a pandemia. Nos EUA, o efeito dos apoios familiares de emergência aguentou a procura interna e as estatísticas do desemprego são maquilhadas pelo número de pessoas que passaram a ser consideradas estar fora da população ativa. E ainda não temos os números da recessão entre abril a fim de junho, que serão piores do que as estimativas iniciais.
O que, em contrapartida, já se sabe é que até meados de abril os quatro maiores bancos mundiais em carteiras de crédito constituíram novas provisões no valor de 24 mil milhões de dólares (na recessão de 2009 o valor tinha sido de cinco mil milhões). Temem um efeito de arrastamento na falência de empresas e famílias ao longo de 2021. Na Alemanha, o sistema de lay-off abrangeu 7,3 milhões de trabalhadores, em 2009 tinham sido 1,5 milhões. E é proporcionalmente menos do que em Portugal, 1,3 milhões em abril, 800 mil em maio. Os apoios sociais de emergência são maiores em toda a Europa do que na crise de há uma década e tanto na Alemanha como em Portugal prevê-se um corte menor nos salários, mas ainda assim haverá perda de rendimento. A procura interna está comprimida. E ninguém se atreve a antecipar a dimensão da vaga de falências até ao final de 2020.
O que é mau fica pior
Vai ser essa vaga de falências, que é inevitável, que irá determinar o nível de desemprego em 2020 e 2021. Na Alemanha, a subida foi só de 5,8% em abril para 6,3% em maio, mas na Áustria chegou aos 12,8% em abril, mais 5,5% que em 2019, e em Portugal são mais 100 mil desempregados num mês. Acresce que vários fatores podem vir a agravar esse efeito recessivo. Um deles, a que tem sido dedicada pouca atenção, é a fraude no lay-off. Houve indicações disso em Portugal, com o registo de empresas que estariam a receber o pagamento da Segurança Social referente a trabalhadores que, mesmo com salário cortado, continuariam a laboração. Em França, um estudo indica que cerca de 10% da verba total gasta com o lay-off não devia ter sido paga. Ora, a fraude indicará certamente ganância, mas em alguns casos será também o prenúncio do fim da empresa. Estudos, como um artigo publicado no mês passado por economistas das Universidades de Chicago e de Stanford e do ITAM, do México, antecipam que 42% do lay-off virá a ser permanente. Este impacto pode ser devastador, sobretudo porque entretanto se esgotarão o apoios de emergência garantidos pelos Estados.
Deve-se recordar que o ano já não se anunciava bom. Em novembro passado, a OCDE antecipou que a “perspetiva global é frágil, com sinais crescentes de que uma queda cíclica se está a afirmar”. O FMI previa “o crescimento mais lento desde a crise financeira global”. Essa desaceleração foi naturalmente agravada pelo choque da pandemia, com a queda da produção e do comércio mundial, e esta semana a previsão do FMI era de uma recessão global de 4,9%, pior do que em 2009. Para a Europa, prevê uma queda de 10,2%, mas mais de 12% nos casos de França, Itália e Espanha. Nunca se viu disto. É melhor mesmo guardar os foguetes.
O pior seria tudo voltar ao normal
Entretanto, as dívidas soberanas dispararam com os défices provocados pelos apoios sociais e a empresas, que não poderia ser de outro modo. Os novos cálculos oficiais para os rácios da dívida pública no PIB são de 131% para Portugal, de 115% para Espanha, de 116% para França, de 159% para a Grécia, de 160% para Itália. Assim, a perspetiva de recuperação em 2021, que as autoridades europeias continuam a festejar, depende em grande medida do que acontecerá com estas dívidas. Se forem restabelecidas as regras do Pacto de Estabilidade, então os países terão que apertar políticas orçamentais recessivas no imediato, com um efeito de contaminação perigoso. Voltar a esse normal seria a pior das ameaças.
Essa escolha, como sempre, depende da Alemanha. Sendo de antecipar que Merkel consiga algum compromisso com o bloco holandês a respeito do programa europeu de recuperação, as suas condições concretas vão ser determinantes para os países do Sul. O problema é que a tentação é grande: 10 anos depois do grande resgate bancário com a crise financeira de 2008, esta recessão está a gerar uma nova divisão de trabalho na União Europeia, em que as economias excedentárias podem reforçar os seus campeões industriais e recompor a sua banca, concentrando maior capacidade produtiva e financeira e periferizando as economias espanhola e italiana. Não são dias de união e é dos que a proclamam que mais devemos desconfiar.
Francisco Louçã - “Expresso” - 27 de junho de 2020