Três histórias de guerra em tempo de paz ou
vice-versa...
Estamos a poucos dias da celebração da data festiva que é o
nascimento de Jesus Cristo. Tempo de reconciliação entre os homens de boa
vontade, de paz e de concórdia. Recordo, aqui, nestas três histórias que podiam
ser de Natal, de esperança, paz e fraternidade, três episódios da guerra
colonial.
Recordação de um
Homem bom
Conheci o Carlos há muitos anos. Nascera no Pé da Serra e
era ali na aldeia, por alturas do Verão e das festas que era costume
encontrá-lo, a pretexto de um jogo de futebol, no “estádio” sobranceiro ao
povoado. Outras vezes encontrava-o quando vinha a Nisa com a mãe e a irmã,
tratar da vida.
Foi, pois, com satisfação que o encontrei, em 1971, na EMEL
em Paço de Arcos. Estávamos a tirar a especialidade, eu como “soldado-raso”,
ele como cabo-miliciano. Éramos de cursos diferentes e ele no fim do dia
recolhia-se até à Amadora, onde, presumo, tinha acolhimento. Não falava muito,
o Carlos. As nossas conversas tinham como motivo Nisa e o Pé da Serra, as
coisas próprias da juventude.
Terminada a especialidade deixámos de nos ver. Cada um tomou
o seu caminho. Eu andei de quartel em quartel até “poisar” nos Adidos, na
Calçada da Ajuda. Foram meses infernais, de Fevereiro a Junho de 1972. Tinha
sido mobilizado para a Guiné, em rendição individual, e nesses meses vim Nisa,
despedir-me da família, umas quantas vezes. Parecia um “calvário” interminável,
a repetição de uma despedida que de cada vez se tornava mais dolorosa.
Parti, enfim, rumo a Bissau, ao quartel do Batalhão de
Engenharia. Passado pouco tempo encontrei o Carlos. A tropa, o sortilégio da
vida militar, o que quer que fosse, juntara-nos na mesma unidade, em África.
Era furriel-miliciano na secção de Motores Fixos, que prestava apoio técnico e
reparava geradores, alternadores, de toda a Guiné, serviço que, não raras
vezes, o levavam aos locais mais inóspitos do território.
Eu tinha outra ocupação e em serviço diferente, motivos por
que, no mesmo quartel, não se víamos amiúde.
Após o 25 de Abril, num dia de Maio de 1974, à tardinha,
vejo chegar o Carlos num jeep e diz-me: Mário, anda daí, vem comigo!
Estranhei o pedido, àquela hora e respondi-lhe:- Espera, vou
buscar a G3!
- Não, não é preciso, não tragas arma!
Montei-me no jeep, íamos a caminho de Bissalanca e rumámos
na direcção de Safim. Até aqui ainda estávamos em zona de segurança.
Prosseguimos na estrada, perguntei-lhe aonde íamos e ele só me dizia: Espera
que já vês!
Eu não estava a ver nada e a ficar cada vez mais inseguro.
Passámos Nhacra e cortámos á direita. Já sabia aonde íamos, faltava saber o
motivo e tornei a perguntar-lhe:
- Ó Carlos, mas o que é que vamos fazer ao Cumuré, a esta
hora?
- Vamos ver uns amigos! – respondeu.
Passámos a porta de armas, ele disse qualquer coisa que não
entendi ao oficial de dia e este apontou-lhe para uma caserna no extremo do
quartel. Uma caserna com guardas (soldados) à porta, o que estranhei. Depois e
para minha surpresa, entendi tudo, o secretismo da viagem, o horário, a guarda
da caserna. Só ficou por perceber e o Carlos nunca me deu essa informação, o
motivo de não levarmos armas.
Entrámos na caserna e...fiquei a saber que era ali que
estavam os elementos da ex-PIDE/DGS. O Carlos perguntou por um nome, apareceu
um homem ainda novo, fitou o Carlos e vi naquele olhar tanta coisa: surpresa,
gratidão, afecto, amizade.
O Carlos não esquecera o seu conterrâneo e fizera 50 quilómetros para
lhe dar uma palavra de conforto, de ânimo, de esperança. É fácil escrever isto,
40 anos depois. Mas não era qualquer pessoa, num contexto de revolução,
agitação social e política, e, sobretudo de vingança, que tomaria uma atitude
como esta.
O Carlos, entre todas as considerações, valorizou o aspecto
humano, de fraternidade e companheirismo e foi abraçar o seu conterrâneo.
Cumprimentei o senhor, não me lembro do nome, o Carlos
disse-lhe que era de Nisa e ainda brincámos com algumas das “revelações” que
fez, a propósito de ter tido uma namorada em Nisa.
Regressámos a Bissau já noite cerrada. Sem armas, como tínhamos
ido. Eu, muito mais tranquilo e um pouco mais informado. Os dias que se
seguiram, foram de grande agitação. Aproximava-se o fim da comissão de serviço,
o “piriquito” já tinha entrado para o clube da velhice e o pensamento estava em
Portugal ou na Metrópole, se preferirem. Eram dias febris, havia comissões para
tudo e mais alguma coisa e eu vi-me envolvido numa, a nível da unidade. Esqueci
o episódio do Cumuré e passado um mês rumava a Lisboa onde no aeroporto de Figo
Maduro me deparei com uma manifestação do MRPP que gritavam a plenos pulmões:
“Nem mais um soldado para as Colónias!
Passou-se um ano. Nunca mais vi o Carlos, até que um dia, no
Verão de 1976, apareceu em minha casa, em Nisa. Eu tinha casado há pouco tempo e recebi-o
com grande satisfação.
Reparei que o Carlos não era o mesmo. O sorriso
tinha-se-lhe desvanecido. Estava doente, gravemente doente, mas despojado como
era das coisas materiais, descuidara-se consigo próprio. Nunca me falou da
doença, mas em jeito de despedida, disse-nos: “Tenho esperança em ver nascer o
meu filho!
Viu e ainda conviveu com ele durante dois meses. Depois,
apagou-se...
Faleceu a 25 de Dezembro de 1976. Há 42 anos...
Era Natal, um dia como tantos, para nascer e morrer. Eu
quero fazer renascer, neste texto, a imagem e a memória de um homem bom, de um
grande amigo que “partiu tão cedo desta vida descontente”.
Chamava-se Carlos da Cruz Ribeiro e há muito que repousa, em
Paz, num lugar etéreo onde subiu pela vontade do Criador.
Mário Mendes