Três histórias de guerra em tempo de paz ou
vice-versa...
Estamos a poucos dias da celebração da data festiva que é o
nascimento de Jesus Cristo. Tempo de reconciliação entre os homens de boa
vontade, de paz e de concórdia. Recordo, aqui, nestas três histórias que podiam
ser de Natal, de esperança, paz e fraternidade, três episódios da guerra
colonial.
Cristo redentor em
terras africanas
Retomámos a rotina dos dias. Procedíamos à instalação
eléctrica de um edifício fora do aquartelamento e de arquitectura colonial:
alto, de um só piso e com uma sobre-câmara ou sótão, a percorrer toda a
estrutura do imóvel. Era aí que montávamos a instalação, com caixas de
derivação e de saída para todos os compartimentos. Era um trabalho debaixo de
telha, feito quase em silêncio, pois nem eu entendia crioulo, nem o meu
ajudante, civil, percebia muito de português. Entendíamo-nos e era o
suficiente.
Num desses dias, de tarde, pareceu-nos ouvir gemidos, logo
seguidos de palavras de intimidação, em português, que eram traduzidas para um
dialecto local. Fiz sinal ao meu companheiro para não se mover e manter em silêncio. Com
cuidado, arrastando-me, consegui chegar por cima do compartimento de onde vinha
o alarido. Melhor fora que não visse. Em baixo e sem terem detectado a minha
presença, um furriel-miliciano e um elemento da milícia faziam um
interrogatório, a um jovem, ainda adolescente, vestido apenas com uns calções e
com as costas sangrando como um Cristo redentor. Era uma cena aterradora,
violenta, uma imagem que durante muitos anos não saiu da minha cabeça. O
furriel, alto e corpulento, do serviço de informações, dava ordens ao africano
da milícia e este, de chicote na mão, tal como o furriel, fazia perguntas ao
jovem que tinham capturado no mato. Este, não sabia uma palavra em português,
nem sequer em crioulo, apenas a língua ou dialecto da sua aldeia ou etnia. Queriam
saber que ligações ele teria com um qualquer grupo dos “turras”. O jovem
respondia negativamente e por cada resposta, era vergastado.
O seu corpo, as suas costas, eram um rio de sangue.
Aguentou-se, de pé, enquanto pôde, sempre negando o que lhe perguntavam e com
tal firmeza, que os dois elementos do interrogatório e da tortura, tiveram que
desistir. Levaram o jovem, a porta fechou-se e eu respirei de alívio. Em tão
pouco tempo de Guiné, estava a ter uma “preparação” política e social muito
diferente do que poderia imaginar. Guardei este episódio para mim durante
muitos anos, como uma das imagens mais violentas e violentadoras da consciência
e dos direitos humanos.
Neste Natal recordo este episódio sangrento. Não dei um tiro
na guerra, não vi camaradas a morrer, vítimas de minas, ataques ou emboscadas.
Mas vi o lado mais negro e subterrâneo de um conflito bélico: a violentação do
outro, física e moralmente, o despojo dos seus elementares direitos de
cidadania, da sua dignidade.
Mário Mendes in "Alto Alentejo" - 13/12/2017