Estamos a poucos dias da celebração da data festiva que é o
nascimento de Jesus Cristo. Tempo de reconciliação entre os homens de boa
vontade, de paz e de concórdia. Recordo, aqui, nestas três histórias que podiam
ser de Natal, de esperança, paz e fraternidade, três episódios da guerra
colonial.
O guerrilheiro
intelectual
Estou há pouco mais de um mês na Guiné, destacado para
cumprir a comissão de serviço militar e já conheço os horrores da guerra sem
ter sido mobilizado para nela participar. Ainda há 15 dias estava em Bissau no
quartel de Engenharia e agora, aqui perdido numa aldeia do sul do território.
Comecei a ambientar-me ao clima, basta olhar para as minhas pernas e braços, salpicados
de empolas pelas mordidelas dos mosquitos. A aldeia tem mulheres novas de seios
nus que se riem à minha passagem. Basta olharem para os calções ainda com goma
e as pernas esbranquiçadas cheias de mazelas para perceber o alvo das suas risotas.
Sou, para elas, um “piriquito” acabado de chegar da Metrópole. A tabanca tem
pouco para descrever e o aquartelamento são duas ou três casas de alvenaria e
outras de madeira, improvisadas, para além dos abrigos que servem de caserna à
guarnição portuguesa. À volta, o arame farpado, por vezes reforçado, e os
obuses, estrategicamente colocados para a defesa ou para ripostar ao fogo
inimigo (bater a zona). Estou ali com outro companheiro da Engenharia, civil e
guineense, para executarmos alguns trabalhos de electrificação e em certo dia o
comandante, um alferes-miliciano, pede-me para “ir guardar os presos” pois iam
fazer uma operação nocturna. Era apenas um preso e especial. Que nem precisaria
de guarda pois se quisesse fugir fazia-o facilmente. O problema era saber para
onde. A Guiné, principalmente, aquela zona do território, não tinha estradas.
Só rios e bolanhas e trilhos armadilhados e à noite, como diz o povo “todos os
gatos são pardos”.
O preso, guerrilheiro do PAIGC era de origem cabo-verdiana.
Não era um preso qualquer, filho do administrador de Bafatá, a segunda cidade
mais importante da Guiné, 7º ano dos liceus feito em Portugal, uma cultura
política de nível superior. Baralhou-me a cabeça. Falou-me da guerra e da
ditadura que vigorava em
Portugal. Disse-me , vezes sem fim, que a luta não era contra
nós (os militares) mas sim contra o poder colonialista de Lisboa. Ouvi-o quase
sem lhe responder. Mesmo que quisesse não sabia. Não tinha palavras para ele e,
no fundo, admitia que a sua argumentação tinha alguma lógica. Éramos
preparados, física e militarmente, para ir “combater os turras”, mas não havia
qualquer preparação de carácter político e social. Recebi, ali, a primeira
grande lição sobre política anti-colonial e para meu espanto, ofereceu-me, depois
um livrinho que me deixou ainda mais surpreso e desorientado. Era o livro da 1ª
classe das escolas rurais do PAIGC utilizado nas chamadas “zonas libertadas” e
escrito, imaginem, em português e algumas frases do crioulo guineense.
Guardei e escondi o livro o melhor que pude. Ali não haveria
qualquer perigo, mas regressado a Bissau e à Engenharia, o livrinho passou a
ser uma preocupação e factor de risco. Logo que tive ocasião desfiz-me dele,
antes que, por descuido, tivesse algum problema disciplinar.
O 25 de Abril e a liberdade ainda estavam longe, mas não
mais esqueci esta lição de política de um “turra”, preso e intelectual
guineense.
Mário Mendes in "Alto Alentejo" - 13/12/2017