Celebra-se, nesta época festiva, o nascimento do
Deus-Menino.
Ascendendo na magnificência das catedrais ou na simplicidade
acolhedora das capelinhas aldeãs, as espirais do incenso, perfumando os
templos e as almas, falam ao mundo dos direitos e privilégios da Divindade,
reconhecida e adorada pelos Reis Magos há cerca de dois mil anos.
O ouro dos tronos e o rendilhado e o relevo dos retábulos
sugere-nos a significativa oferenda deposta pelos mesmos sábios orientais aos
pés de Cristo-Rei.
E a humanidade, acorrendo dos palácios luxuosos ou dos
tugúrios mais desconfortáveis para assistir, contrita e confiada, à celebração
da missa da meia-noite, é bem aquela rasteira e pisada mirra que, do fundo do
seu nada, se entrega nas mãos de Deus.
Santa Missa do Galo! A liturgia envolve-se numa aura de
simbólico misticismo, e a alma dos crentes, despojada de toda a ganga terrena,
desprende-se, nesses doces instantes, de todas as vilezas e, purificada pelo
ambiente, parece revolver à cristalinidade da inocência paradisíaca.
Rasgam-se e abrem-se os corações a todos os influxos do bem
e parece que quanto mais agreste é a nortada mais o calor da bondade se inflama
e mais ardentes e sentidos são os gestos de solidariedade e amor do próximo.
Nesta quadra, jubilosa ou empalidecida de saudade pelos
ausentes, ou mortificada pela falta dos que não mais podem voltar, os risos das
crianças enchem o ar de estridulas sonoridades e apenas elas têm o condão de
dulcificar o amargar nestas recordações.
Santa Missa do Natal! Como nesta hora, após uma caminhada de
seis décadas, tudo me parece diferente!
Ainda os frios dezembrinos não nos mordiam as carnes e já
grupos de garotos se iam amestrando para, antes e depois do Natal, andarem de
casa em casa a cantar o Menino Jesus e os Reis.
Também assim andei. E das traquinices e picardias de então
recordo-me como se fossem ontem!...
Logo do fundo das escadas, o mais azougado ou o de melhor
garganta gritava:
- Menino Jesus de Nazaré, quere que cá cante?
Se a resposta era afirmativa ingressávamos todos no aposento
onde estava reunida a família da casa, em geral a cozinha, e logo começava a
loa:
Ó meu Menino Jesus,
Ó meu Menino tão belo,
Quando vieste nascer:
No rigor do caramelo!
Com maior ou menor afinação lá íamos até ao epílogo:
Vamos ver a barca bela
Que fizeram os pastores:
Vai Nossa Senhora nela
Toda cercada de flores.
Seguia-se o peditório também cantado:
Taco, taco,
Esmola para o saco;
Quem não quiser dar um vintém
Que dê um pataco.
Esta casa
Está forrada de cortiça;
A senhora que nela mora
Há-de dar-nos uma linguiça.
Feita a quete, debandava a rapaziada. Se, porém, a gorgeta
não agradava por exígua, era certo que, do limiar da porta da rua, se atirava
lá para cima o comentário estigmatizante, numa outra versalhada tradicional
inçada de impropérios.
É claro que nessa altura, pelas escadas abaixo vinha logo a
sanção, mas sem eficiência, porque o Menino Jesus punha asas nos pés naqueles
pícaros...
Chegada a véspera do Natal, logo ao princípio do serão
começava a festa familiar. Preparava-se a massa para as filhós e azevias e,
pouco depois, com a frigideira ao lume e o azeite bem quente, todo o pessoal
feminino tinha de exercer a sua função. Umas estendiam a massa, sobre a qual
iam colocando equidistantes colheres de espécie (feita em geral de grão de bico
ou batata) e, com a carretilha, iam recortando as azevias.
Tinham algumas a seu cargo a frigideira e ainda outras iam
talhando as filhós, enquanto a encarregada da ceia punha todo o cuidado em
tornar apetitosa a consoada.
Também não faltava, nestes serões de alegria doméstica, a
nota jocosa ou humorística.
Para alguma conviva mais retardatário, era certo aguardá-lo
surpresa hilariante: havia sempre duas ou três azevias com com recheio de
estopa ou milho miúdo... E então rebentava gargalhada estrondosa, quando o
recém-chegado procurava desenvencilhar-se das fibras de estopa em que cravara
os dentes ou em volta de si esparrinhava os roliços e pequeninos grãos de
milho...
Às dez horas tocava a primeira vez para a missa, às onze a
segunda, e, à meia-noite em ponto, o padre acercava-se do altar, depois de, ao
fim de porfiadas diligências, se conseguir calar as inúmeras galinhas (um
filete de tripa de vaca interposto a dois pedacinhos de cana) com que a
garotada serranizava e importunava toda a gente durante a época e de cujo abuso
nem mesmo na igreja se abstinha.
Terminavam as cerimónias cultuais, quando o pároco, de capa
de asperges, dava o Menino a beijar. Então a confusão e o alarido não havia
admoestações que os dominassem.
E, na expectativa duma ceia opípera e das doçarias e mimos
que a esperavam toda a multidão tomava o caminho dos seus lares, a desenregelar
os membros no brasido, para em seguida se refastelar e rejubilar na abundância
e prazer da consoada...
Era assim noutros tempos o Natal.
Se os pais e avós podiam proporcionar a filhos e netos além
das alegrias da seroada, brinquedos, rebuçados ou bombons, era sempre o menino
Jesus, aquele róseo bambino do presépio de Belém, que vinha deixá-los nos
minúsculos sapatinhos.
Ninguém conhecia o velho e encanecido Pai-Natal; de resto,
falando em língua estranha ninguém poderia entendê-lo.
Era, em tudo, bem português e estruturalmente cristão o
Natal de há meio século, sem estrangeirice inaclimatada de Árvores, cujos ramos
de agulhas agressivas esfiapam a neve nos países do norte e que estes iam e vão
arrancar à glacialidade da sua paisagem, para as decorarem de ourepol e ficarem sempre, por mais providas de fulgor
e riqueza, frias e inexpressivas.
Hoje a vaga, que algum tanto se espraiou pela terra lusa,
parece querer refluir e por toda a parte se acentua o regresso aos antigos
costumes patriarcais.
Os presépios, inspirados nas inconfundíveis obras de arte
que, no género, nos ficaram de antanho, reflorescem por todo o Portugal e até
nas escolas primárias eles atraem as almas infantis, pondo-lhes no olhar
reflexos de bem-aventurança.
Dir-se-ia que, nesta linda fímbria da Europa, os corações
fremem em anseios de salutar recristianização. Que tão notável surto de fé e de
lusitanismo continue a mover os ânimos e que, como no reatar das tradições do
Natal, a nossa Pátria seja sempre, em tudo e por tudo, genuinamente,
orgulhosamente portuguesa!
J. Figueiredo in
“Correio de Nisa” nº 22 – 25/12/1945