O
sermão de Santo António aos Peixes constitui um documento da surpreendente
imaginação, habilidade oratória e poder satírico do Padre António Vieira. Todo
o sermão é uma alegoria, porque os peixes são uma metáfora dos homens. Foi
pregado em S. Luís
do Maranhão, a 13 de Junho de 1654. Um sermão com mais de 360 anos e que é de
uma actualidade extraordinária.
Ora
vejam:
Antes,
porém, que vos vades, assim como ouvistes os vossos louvores, ouvi também agora
as vossas repreensões. Servir-vos-ão de confusão, já que não seja de emenda. A
primeira cousa que me desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos
outros. Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só
vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo
contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande
para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem
pequenos, nem mil, para um só grande. (...)
Tão
alheia cousa é, não só da razão, mas da mesma natureza, que sendo todos criados
no mesmo elemento, todos cidadãos da mesma pátria e todos finalmente irmãos,
vivais de vos comer! Santo Agostinho, que pregava aos homens, para encarecer a
fealdade deste escândalo, mostrou-lho nos peixes; e eu, que prego aos peixes,
para que vejais quão feio e abominável é, quero que o vejais nos homens. (...)
O
Polvo
O
polvo com aquele seu capelo na cabeça, parece um monge; com aqueles seus raios
estendidos, parece uma estrela; com aquele não ter osso nem espinha, parece a
mesma brandura, a mesma mansidão. E debaixo desta aparência tão modesta, ou
desta hipocrisia tão santa, testemunham constantemente os dois grandes Doutores
da Igreja latina e grega, que o dito polvo é o maior traidor do mar.
Consiste
esta traição do polvo primeiramente em se vestir ou pintar das mesmas cores de
todas aquelas cores a que está pegado. As cores, que no camaleão são gala, no
polvo são malícia; as figuras, que em Proteu são fábula, no polvo são verdade e
artifício. Se está nos limos, faz-se verde; se está na areia, faz-se branco; se
está no lodo, faz-se pardo: e se está em alguma pedra, como mais ordinariamente
costuma estar, faz-se da cor da mesma pedra.
E
daqui que sucede? Sucede que outro peixe, inocente da traição, vai passando
desacautelado, e o salteador, que está de emboscada dentro do seu próprio
engano, lança-lhe os braços de repente, e fá-lo prisioneiro. Fizera mais Judas?
Não fizera mais, porque não fez tanto. Judas abraçou a Cristo, mas outros o
prenderam; o polvo é o que abraça e mais o que prende. Judas com os braços fez
o sinal, e o polvo dos próprios braços faz as cordas.
Judas
é verdade que foi traidor, mas com lanternas diante; traçou a traição às
escuras, mas executou-a muito às claras. O polvo, escurecendo-se a si, tira a
vista aos outros, e a primeira traição e roubo que faz, é a luz, para que não
distinga as cores. Vê, peixe aleivoso e vil, qual é a tua maldade, pois Judas
em tua comparação já é menos traidor!
Padre
António Vieira, 1654.