“No meu tempo a bola era "quadrada""
Do futebol de hoje ao
futebol, tal e qual se praticava em Nisa, há 60 anos, no tempo de andar “com as
balizas às costas”, vai uma grande distância: o “salto” das transformações que
abalaram o mundo e do poder do dinheiro, que se instalou na designada
“indústria do futebol".
Joaquim da Cruz Ribeirinho
Louro, nisense, 85 anos, lembra, com uma memória, por vezes ténue, outras,
empolgante, o que foram esses tempos e as paixões que o futebol despertava em Nisa. Ouçamo-lo :
“ Nasci em Nisa e andei na
escola do Rossio e fiz a 4ª classe, sendo aprovado com distinção. O meu
professor era o senhor José Dinis Paralta e quando queria dar reguadas dizia:
xi, xi, xi, . Nunca levei reguadas, mas uma vez livrei-me de levar uma quantidade
delas. O professor estava a fazer perguntas a um colega e eu antecipei-me e
comecei a responder por ele. Diz-me, então o professor: “Ai sabes muito? Pois
vais responder a seis perguntas e se não souberes podes preparar as mãos. Eu
respondi, com grande alívio, às perguntas.
Quando saí da escola estive
até aos 14 anos a ajudar o meu irmão Xico, que era alfaiate e barbeiro. Fiz
ainda outros trabalhos e depois fui para o Grémio da Lavoura, onde estive mais
de 20 anos, como contabilista.
Trabalhei também na Barragem
do Fratel, na firma Vaz Guedes, Serra e Fortunato, em Nisa na Padaria do sr.
Virgílio, era eu que passava as facturas e dava alguma assistência na
contabilidade, para além de ter trabalhado ainda na Seprol, uma empresa que
andava a instalar a rede de esgotos em Tolosa.”
E não me falou no Cine Teatro, onde
esteve alguns anos…
" Fui o bilheteiro do cinema.
Antes de mim era o senhor Moniz que lá estava, era empregado do Alcobia, que
trouxe e cinema à renda durante anos. O Moniz passou-me a pasta a mim quando a
exploração do Cine Teatro passou para a firma António Mendes, que era o pai do
senhor Vilela.
Vendi bilhetes durante
muitos anos, recebíamos uma bagatela, 3 ou 4 escudos. O cinema também não dava
para mais e sempre víamos algum filme. Antigamente havia muita gente a ir ao
cinema. Filmes de cowboys e de romanos era sempre casa cheia. Isso hoje
acabou e eu nunca mais fui ao cinema, a não ser a alguns espectáculos ou
iniciativas da Câmara para idosos.
Vamos lá então ao futebol…
" Comecei a jogar aos 18 anos
no Sport Lisboa e Nisa (Benfica). Os jogos eram no campo do Alto de Palhais e
ali jogávamos com o Alpalhão, Ponte de Sor, Alter e outras equipas. Havia muita
gente a ver os jogos, era um disparate.
Quando apareceu o Sporting
em Nisa, nos finais dos anos 30,
a direcção disse-nos: “rapaziada, aqueles que são
sportinguistas e quiserem sair, podem sair à vontade”. E eu, o Jaime Matutino e
outros fomos jogar para o Sporting. E foi pelo Sporting que nós ganhamos ao
Benfica de Nisa por 4-3 na inauguração do Campo do Sobreiro. O campo estava
cheio, eu jogava a interior-direito. Nesse tempo, não era como agora. As
equipas jogavam “à inglesa”, com cinco avançados, para marcar muitos golos.
O Sporting de Nisa teve uma existência
muito curta?
" Sim, durou pouco tempo.
Quando comecei a jogar já havia campo. O terreno no Alto de Palhais era do sr.
Júlio Bento e do pai do sr. Isaac. Eram pessoas muito bairristas e também
gostavam de futebol.
O Campo do Sobreiro esteve
primeiro cedido ao Sporting, pois o Dr. Carlos Bento estava casado com uma
filha do sr. Aníbal Vieira, o dr. Graça. Como o Sporting acabou, o campo
continuou a ser utilizado pelo Benfica até hoje.
O Sporting tinha uma sede na
rua do Mártir, por cima da casa do sr. Mário Bicho, numa casa do sr. Passinhas.
O contínuo era o ti Manuel Marzia e a casa tinha um grande quintal onde se
faziam bailes com muita gente. Naquela altura, o povo era quase todo
sportinguista."
Quantos anos jogou à bola?
Quantos anos jogou à bola?
" Joguei futebol durante 15
anos. No Benfica e no Sporting. Gostava muito de jogar e era essa paixão que
nos motivava. Nunca ganhámos nada. Uma vez, quando me mudei do Benfica para o
Sporting ainda levei uma estalada do meu pai, lembro-me bem, à lareira, pois
ele queria que eu jogasse no Benfica, não por ser benfiquista (era do Sporting)
mas por respeito e afeição ao dr. Granja, um grande benfiquista que Nisa teve.
Nunca tive problemas com o
futebol. Jogava-se rijo, corria-se muito, havia por vezes umas cacetadas, no
calor dos jogos, mas depois tudo serenava. Era tudo boa gente. Jogava-se mais
com o físico, não havia a técnica que há agora. Nem a técnica, nem os treinos e
muito menos as condições que há hoje.
Uma vez fomos jogar ao Crato
e viajámos numa carroça do ti Zé Moleiro. Demorámos 3 ou 4 horas daqui para lá
e chegámos a casa já bem de noite."
Como foi o seu percurso de treinador?
Como foi o seu percurso de treinador?
" Eu propriamente treinador
encartado nunca fui. Sendo sportinguista e sócio do Nisa e Benfica dei sempre a
minha melhor colaboração a qualquer das direcções que me pediram para eu
treinar, fosse a equipa de juniores, fosse a dos seniores. Treinava sem
qualquer manual, baseava-me mais naquilo que eu sabia e na minha experiência
pessoal. O que eu exigia era a preparação física. Esta é a base principal de
qualquer jogador. Futebolista mal preparado não pode competir e não pode dar
bom resultado."
Futebol de ontem, futebol actual. Quais as semelhanças e diferenças?
Futebol de ontem, futebol actual. Quais as semelhanças e diferenças?
" Gosto muito de futebol e
sempre que possível vou acompanhando. As arbitragens não condizem com aquilo
que o futebol precisa, tem de haver mais verdade no jogo. O futebol agora é
muito mais técnico, no geral. Privilegia-se a defesa, não sofrer golos, no meu
tempo era ao contrário: marcar quantos mais melhor.
Em Nisa, tenho pena do que
se está a passar, sem termos uma equipa sénior de futebol. No meu tempo tivemos
duas, duas grandes equipas e lastimo bastante que não haja futebol em Nisa. As pessoas têm que
acordar.
Eu joguei futebol, o que dei
ao futebol foi de vontade e por prazer. Posso não ter agradado a muitos, mas
nem eu nem os meus colegas desse tempo tiveram qualquer benefício em serem
jogadores. Só um grande prazer e uma
forte paixão.”
Se calhar é o que falta a
muitos dos nossos “ídolos” com pés de barro…
Mário Mendes in "Jornal de Nisa" nº 219- 2006