(...) Curta
demora em Gafete, a visitar o dr. João de Morais, clinico da velha Escola, tão
fora do seu tempo e da moderna deontologia médica, que pratica a medicina como
se ela fosse um sacerdócio, a todos, pobres e ricos, prestando os mesmos
inteligentes serviços com a mesma solicitude desinteressada.
Continua
sendo má a estrada, mas agora, bordada de eucaliptos e sobreiros, formando
abóbada, ela torna-se interessante, distraindo-nos um pouco dos trambolhões que
o carro dá, apesar dos cuidados e mestria com que é guiado.
Passámos
por Alpalhão sem nos apearmos, nem sequer movidos pela curiosidade de vermos o
lugar onde existiu o Castelo - ubí fiut Troja - que os romanos já encontraram
quando vieram aqui. Pertencia este Castelo ao Mestrado da Ordem de Cristo, Ordem
que bem merecia, como as outras ordens militares que ajudaram á formação e
consolidação da nacionalidade,
que o Estado, ontem monárquico e hoje republicano, as tivessem na devida consideração.
Tambem
por Nisa passámos sem nos apearmos, informados de que a estrada velha, uma
carreteira em que vamos entrar agora, realisa o milagre de ser pior que a
estrada, primitivamente macdamizada, que deixamos, horrivelmente zurzídos.
Muros
de pedra solta, aqui e além quasi estrangulando as azinhagas, talhadas á medida
dum carro de parelha, carregado de produtos agricolas - cortiça, palha ou trigo
em rama. Se
nos aparece um destes carros pela prôa, teremos de recuar até que possamos sair
do caminho, o que talvez me impeça de ainda hoje tomar o comboio para Lisboa,
faltando, involuntariamente, a compromissos que obrigam.
Acabaram
as azinhagas, os muros e os valados; mas não se pode romper a corta-matos,
porque ou a terra é lavrada, ou as arvores são bastas.
Um
bom ramo de montado de azinho, e lá em baixo, apertada entre modestos outeiros}
uma ribeira que parece correr, á procura d'agua.
Conheço
mal a bacia hidrográfica do Nisa, contribuinte ou afluente do Tejo, tão mal que
se alguém me tivesse dito, ainda ha poucos anos, que represariam as suas aguas,
em qualquer ponto, fazendo uma albufeira, eu riria do projecto, considerando-o
irrealizável.
Pois
a represa fez-se, e aqui estou eu sentado no paredão que lhe estanca as aguas,
espesso de vinte e cinco e alto de vinte e oito metros, quando o altearem, como
está projetado, sendo de trezentos metros o seu comprimento. Bem entendido, a
espessura indicada é a da base, que a da crista será de cinco metros apenas.
Realisadas
todas as obras projectadas, a albufeira terá seis quilometros de extensão por
dois de largura, armazenando vinte e dois milhões de metros cubicos d'agua. Então
a Hidro-Eléctrica, dispondo de 9.000 HP. de força, poderá abastecer de energia
a parte mais importante dos distritos de Portalegre, Évora, Santarém e Castello
Branco.
Já é
grande o consumo de energia produzida ali, grande e progressivo, pois que sendo
de 280.000 kw. no ano, em todo o ano de 1928, no ano corrente tem sido
aproximadamente de 200.000 em cada mês.
A que
preço?
Ao
preço de $80 a energia luminosa e $40 a energia motriz.
Além
de ser uma obra no Alemtejo, esta Hidro-Eléctrica tem para mim o particular
merecimento de ser uma obra de alentejanos.
Diz-se,
e é verdade, que o capital alentejano só vai de boa vontade para a terra, para
a exploração agricola, segundo os moldes c1ássicos, lavrar e semear, considerando
a pecuária como industria subsidiária da sua profissão.
Quaisquer
que sejam as origens históricas dos latifúndios alentejanos, a coisa certa é
terem eles resistido ao fraccionamento pela natural evolução da propriedade,
mercê da paixão, da insaciável fome de terra que tem o homem do Alentejo, os
remediados e os ricos, tão grande que os leva a empenharem-se sem remédio,
enfeudando-se aos Bancos ou aos usurários, para adquirirem mais courelas ou
mais herdades, pagando juros excessivos, que os seus rendimentos líquidos não
comportam.
Empreendimentos
dispendiosos, fora do labor agrícola, á maneira adamita, não o seduzem, e para eles
não lança as suas disponibilidades monetárias, sempre á espera de lhe aparecer
a oportunidade de adquirir mais algumas centenas ou milhares de hectares de
terra para dar maior vulto á sua personalidade latifundista.
Sabendo
que a Hidro-Eléctrica é obra de alentejanos, feita por alentejanos e destinada
a servir uma vasta zona do Alentejo, eu tinha imenso desejo de a visitar, vendo-a
com olhos de leigo, naturalmente, mas vendo-a com a simpatia com que vejo tudo
quanto na minha província representa uma utilidade colectiva, concebida e
realizada com inteligência e com probidade.
Nem
já me lembro de que fui mantido dentro do automóvel, como o D. Quixote, numa
estalagem manchega, por almocreves, satisfeito de ver este esboço, já muito
adiantado, duma grande obra, que vale a pena inculcar, como exemplo e como
incentivo, aos desalentados que nunca tiveram alento, aos descrentes que nunca
tiveram crenças, aos desiludidos
das ilusões que nunca tiveram.
Pois
que a Hidro-Eléctrica é uma obra feita, embora ainda incompleta, como já não é
uma tentativa em que se arrisque dinheiro, mas uma empresa em que se coloquem
capitais, por seguro temos que lhe será fácil alcançar os recursos de que
porventura ainda careça para levar a bom e definitivo termo a sua obra, quer os
peça aos particulares, pessoas individuais ou
colectivas, quer os peça ao Estado.
Num
plano de reconstituição económica do País há que fazer uma larga parte ao
aproveitamento da água, quer para serviços de irrigação agrícola, quer para a
produção de energia eléctrica, de mais valor que a obtida pela combustão da
hulha, que não temos, e das
antracites e lenhites que não soubemos ainda utilizar na justa medida.
Como
da Espanha, escreveu Sanchez de Toca Reconstituiçon de España en vida de Economia política
actual - podemos e devemos dizer, relativamente ao nosso País. que - o
interesse principal da nossa economia pátria assenta hoje em a nacionalização
dos nossos organismos económicos.
Não
pode considerar-se economia nacional a que vive invertebrada e com os seus elementos
primários entregues á exploração do capitalismo estrangeiro ou alimenta
monopólios rentisticos e as combinações das oligarquias
financeiras e industriais.
Porque
é genuinamente portuguesa esta peça, valiosa ainda que modesta, do nosso
apetrechamento económico-portugueza pela origem dos capitais com que se fundou e
quanto á nacionalidade dos técnicos que a conceberam, planearam e construíram;
portuguesa, ainda, em relação ás pessoas que a administram, aqui fica expressa
a enorme satisfação que nos causou a visita que fizemos á Hidro-Eléctrica e
expressos os nossos votos pelas suas maiores prosperidades.
Para fugirmos ao mau caminho até Nisa, avançamos em
direcção a Castelo de Vide, e logo constatamos que a inspiração foi boa, porque
já o carro pode marchar mais depressa, e não se comparam os solavancos de agora
com os trambulhões de ha bocado.
Não havendo demora no caminho, devemos chegar ao Crato a boas
horas de jantar sem pressa, muito a tempo de apanhar o comboio. (...)
Punge-me
um remorso, todavia.
Eu saíra
de Lisboa no firme propósito de ser um mediador da paz entre Nisa e Alpalhão,
firmar nas duas povoações, ha muito desavindas, os extremos de um arco de
aliança, estabelecidas entre os dois povos relações de uma amizade sincera e
duradoira!
Não
imagine o leitor que os romanos de Alpalhão tinham raptado as Sabinas de Nisa.
Tal não sucedeu, pelo menos não o conta a História nem o refere a tradição.
O
caso foi que, num sermão da semana santa, em Nisa, um façanhudo pregador, ao
reboar no templo o estrondo do caixão, fechado com violencia, depois de nêle
metido o corpo do Senhor, exclamou, com fúria, como quem denuncia um crime
horrivel : Ah! cães de Nisa, que mataram o vosso Deus. E a
multidão que enchia o templo, una voce, mulheres; homens e crianças,
apavorados como numa antevisão do Inferno, os olhos afogados em lágrimas, a voz
cortada de soluços, gritaram em direcção ao pulpito : - Não fomos nós, foram
os de Alpalhão.
A
partir desse momento, um ódio de morte atira frequentemente os habitantes de
Alpalhão contra os de Nisa e os de Nisa contra os de Alpalhão, como se uns fossem
guelfos e outros gibelinos.
Ora
eu, pela indiscrição de uma mulher a dias, vim a saber que um ilustre académico
está na posse de documentos que provam á evidencia, de maneira irrecusável,
documentos que brevemente serão lidos em sessão publica da Academia, que não
foram os de Alpalhão nem os de Nisa que mataram o Senhor, mas sim um espanhol
de Porriños, que ali costumava aparecer
vendendo pastillas y bonbones de la fabrica Matias Lopez.
Pensei
em reunir os bons e os velhos daquelas beetrías desavindas e com a notícia
deste formidável sucesso reconciliar, desde já, aquelas duas laboriosas vilas
alentejanas. fronteiriças e vizinhas.
Não o
pude fazer; paciência.
Brito Camacho in "Por Cerros e Vales" (1931) - Págs 181 a 188
Brito Camacho entrou na política em
1893 quando se candidatou a deputado pelo círculo eleitoral de Beja nas listas
republicanas, mas nunca tomou posse porque escreveu um artigo contra as
instituições monárquicas no periódico Nove de Junho, de Beja, tendo sido
suspenso por um ano e depois transferido para os Açores, como penalização.
Regressou ao continente em 1894 e em Abril fundou O Intransigente, um jornal de
crítica política e propaganda republicana. Em 1902 abandonou a medicina e
dedicou-se exclusivamente ao jornalismo e à política. Fundou o periódico A
Lucta, que iniciou publicação no dia 1 de Janeiro de 1906, convertendo-se no
mais influente jornal republicano e no órgão oficioso do Partido Unionista de
que Brito Camacho foi fundador e líder.
Nas eleições realizadas depois do
regicídio foi eleito deputado pelos republicanos e teve um papel muito
importante na preparação do 5 de Outubro de 1910 sendo o elo de ligação entre
republicanos e militares, dada a sua ligação ao exército.
A 23 de Novembro de 1910 foi nomeado
Ministro do Fomento do Governo Provisório. Em 1912 reassumiu o cargo de
director de A Lucta e foi um dos protagonistas da cisão do Partido Republicano
Português liderando a facção mais à direita do novo Partido da União
Republicana.
Passou a desenvolver uma intensa acção
jornalística e política assumindo-se como o principal opositor dos sucessivos
governos formados pelo Partido Democrático. Em 1918, depois da eleição de
António José de Almeida para a Presidência da Republica, afastou-se da
actividade política, abandonou os cargos de liderança partidária e em 1920
recusou o convite para formar um governo apoiado pelo Partido Liberal
Republicano.
Entre Março de 1921 e Setembro de 1923
exerceu as funções de Alto-Comissário da República em Moçambique. Depois
da revolução de 28 de Maio de 1926 abandonou definitivamente a actividade
política, retirando-se para a vida privada.
Morreu em Lisboa no dia 19 de Setembro
de 1934.
Para além de uma vasta obra
jornalística e de comentário político, Brito Camacho é autor das seguintes
obras: Impressões de Viagem, 1902. Contos e sátiras, 1920. A Caminho d'Africa, 1923. Os amores de Latino Coelho,1923. Quadros alentejanos, 1925. Moçambique, Problemas Coloniais,1926. Jornadas, 1927. D.
Carlos, intimo, 1927. Gente rústica, 1927.
Gente Vária, 1928. Cenas da Vida, 1929.
De bom humor, 1930. Gente bóer, 1930. Por cerros e vales, 1931. A Linda Emília, 1932. Matéria vaga, 1934. Política Colonial, 1936. Rescaldo da guerra, 1936. Questões nacionais, 1937.