24.11.13

CRÓNICAS DO REGABOFE (4): Uma representação de pátria através de um poema de Miguel Torga

 Todos nós, assim como quem não quer a coisa, despercebidamente, vamos formando ao longo da vida uma imagem que corresponda, se vá adaptando, ao conceito de pátria, seja lá isso o que for. Pois bem, o que aqui proponho hoje aos leitores é um jogo de reconstrução desse conceito através de um poema de Miguel Torga, justamente titulado de “Pátria”. Melhor dizendo, vou reconstruir para vós a minha imagem de pátria, pois que apenas no conceito ela é uma forma coletiva, dado que quanto ao mais ela se espraia em tantos rios quantos somos cada um de nós, e partindo daqui que cada um imagine a sua que nesta coisa de pátrias cada qual tem a sua e sobretudo há de ter a que souber merecer...
“Soube a definição na minha infância”
E é na infância que se inicia a maravilhosa aventura de todas as descobertas.
Primeiro, livres como os bichos do campo, soubemos do mundo a conta que dele nos dá o império dos sentidos. Eram correrias intermináveis pelas redondezas, titânicos pontapés na bola que só acabavam aos dez, manipulações de tudo e nada, sobretudo das bugalhinhas telecomandadas por dedinhos tão frágeis quanto ágeis a caminho das três covinhas, é um constante sabor a fruta tirada à socapa entre dois olhares furtivos do dono da árvore, o nagalho para comprar um pião, tendas de índios erguidas entre carvalhos, o cheiro das chuvas de outono nas folhas caídas, o trote do burro por entre meia dúzia de ovelhas deslumbradas, os latidos do cão “fiel”...
O mundo constrói-se de dois palmos mal medidos em frente ao nariz e de uma enorme imensidão de espanto!...
Depois, sob a majestática batuta tutelar do mestre escola as coisas iam fiando mais finas. as corridas passaram a ter cem metros, o jogo da bola a chamar-se futebol e à medida que ia ganhando regras ia perdendo a gracinha toda. Enfim, por aí fora até aos cúmulos de encontrar livrescas explicações para a simplicidade da fruta a amadurecer nas árvores e o balir descontraído dos rebanhos.
Agora o mundo empinava-se por sobre cada vez mais vastas definições enquanto a sua compreensão se diluía entre os lábios salivados dos sucessivos mestres.

De morada da liberdade, a pátria, foi-se transformando no nicho oprimido de cegarregas forçadas e mal decoradas pela memória do corpo resistente às roupagens que a educação teima em lhe vestir.
“Mas o tempo apagou
as linhas que no mapa da memória
a mestra palmatória
desenhou”
E como quase tudo o que é apreendido pela repressão é rejeitado pelo mais íntimo do indivíduo, também aquela pátria bafienta e salazarenta que se dizia que ia do Minho a Timor e era impingida a quem das nossas cidades apenas tinha uma ideia nebulosa, e do Portugal atlântico e mediterrânico apenas conhecia o espaço do seu quintal, dele recebia por conhecimento os nomes dos lugares apenas da boca dos professores e dos manuais únicos da educação nacional. Era a pátria do medo suportada pelo saber da palmatória. E a esta pátria, o mais recôndito do nosso ser disse não!
No tempo de nos fazermos homens voltámos a apelar aos sentidos e ao mesmo tempo que esquecíamos irremediavelmente a outra, nessa partilha a dois do conhecimento do corpo, construímos em nossos corações a pátria do amor.
“Hoje
sei apenas gostar
duma nesga de terra
debruada de mar.”
Agora que o saber e o sabor dos sentidos nos trouxeram ao conhecimento da nossa verdadeira dimensão e a imaginação ficou liberta para diferentes lutas, disponível para as sete partidas da razão é bom não esquecer que outras pátrias existem para lá da nossa, a quem outros patriotas dão sentido e valor sabendo merecer o seu lugar na história.
Equipados com os instrumentos mentais que nos vêm com a serenidade dos tempos já vividos, descobrimos o mundo plural desenhado num mapa a muitas cores e podemos finalmente chegar à pátria dos poetas, a pátria onde mora a liberdade.
Jaime Crespo