Todos
nós, assim como quem não quer a coisa, despercebidamente, vamos formando ao
longo da vida uma imagem que corresponda, se vá adaptando, ao conceito de
pátria, seja lá isso o que for. Pois bem, o que aqui proponho hoje aos leitores
é um jogo de reconstrução desse conceito através de um poema de Miguel Torga,
justamente titulado de “Pátria”. Melhor dizendo, vou reconstruir para vós a
minha imagem de pátria, pois que apenas no conceito ela é uma forma coletiva, dado
que quanto ao mais ela se espraia em tantos rios quantos somos cada um de nós,
e partindo daqui que cada um imagine a sua que nesta coisa de pátrias cada qual
tem a sua e sobretudo há de ter a que souber merecer...
“Soube a
definição na minha infância”
E é na
infância que se inicia a maravilhosa aventura de todas as descobertas.
Primeiro,
livres como os bichos do campo, soubemos do mundo a conta que dele nos dá o
império dos sentidos. Eram correrias intermináveis pelas redondezas, titânicos
pontapés na bola que só acabavam aos dez, manipulações de tudo e nada,
sobretudo das bugalhinhas telecomandadas por dedinhos tão frágeis quanto ágeis
a caminho das três covinhas, é um constante sabor a fruta tirada à socapa entre
dois olhares furtivos do dono da árvore, o nagalho para comprar um pião, tendas
de índios erguidas entre carvalhos, o cheiro das chuvas de outono nas folhas
caídas, o trote do burro por entre meia dúzia de ovelhas deslumbradas, os
latidos do cão “fiel”...
O mundo
constrói-se de dois palmos mal medidos em frente ao nariz e de uma enorme
imensidão de espanto!...
Depois,
sob a majestática batuta tutelar do mestre escola as coisas iam fiando mais
finas. as corridas passaram a ter cem metros, o jogo da bola a chamar-se
futebol e à medida que ia ganhando regras ia perdendo a gracinha toda. Enfim,
por aí fora até aos cúmulos de encontrar livrescas explicações para a
simplicidade da fruta a amadurecer nas árvores e o balir descontraído dos
rebanhos.
Agora o
mundo empinava-se por sobre cada vez mais vastas definições enquanto a sua
compreensão se diluía entre os lábios salivados dos sucessivos mestres.
De morada
da liberdade, a pátria, foi-se transformando no nicho oprimido de cegarregas
forçadas e mal decoradas pela memória do corpo resistente às roupagens que a
educação teima em lhe vestir.
“Mas o
tempo apagou
as linhas
que no mapa da memória
a mestra
palmatória
desenhou”
E como
quase tudo o que é apreendido pela repressão é rejeitado pelo mais íntimo do
indivíduo, também aquela pátria bafienta e salazarenta que se dizia que ia do Minho a Timor e era impingida a quem das nossas cidades apenas tinha uma ideia
nebulosa, e do Portugal atlântico e mediterrânico apenas conhecia o espaço do
seu quintal, dele recebia por conhecimento os nomes dos lugares apenas da boca
dos professores e dos manuais únicos da educação nacional. Era a pátria do medo
suportada pelo saber da palmatória. E a esta pátria, o mais recôndito do nosso
ser disse não!
No tempo
de nos fazermos homens voltámos a apelar aos sentidos e ao mesmo tempo que
esquecíamos irremediavelmente a outra, nessa partilha a dois do conhecimento do
corpo, construímos em nossos corações a pátria do amor.
“Hoje
sei
apenas gostar
duma
nesga de terra
debruada
de mar.”
Agora que
o saber e o sabor dos sentidos nos trouxeram ao conhecimento da nossa
verdadeira dimensão e a imaginação ficou liberta para diferentes lutas,
disponível para as sete partidas da razão é bom não esquecer que outras pátrias
existem para lá da nossa, a quem outros patriotas dão sentido e valor sabendo
merecer o seu lugar na história.
Equipados
com os instrumentos mentais que nos vêm com a serenidade dos tempos já vividos,
descobrimos o mundo plural desenhado num mapa a muitas cores e podemos
finalmente chegar à pátria dos poetas, a pátria onde mora a liberdade.
Jaime Crespo