19.10.24

OPINIÃO: A degradação na justiça

Uma década depois da derrocada de um banco que fez milhares de lesados, obrigou à intervenção do Estado e expôs relações perigosas numa certa forma de fazer negócios, iniciou-se finalmente o julgamento do processo principal do BES. Mais difícil será tentar prever quando acaba ou a quantidade de incidentes a que ainda iremos assistir. Neste percurso sinuoso, 11 crimes já prescreveram e outros irão sucessivamente cair ao longo dos próximos meses. A passagem do tempo justifica a forma diametralmente oposta de vermos o outrora chamado dono disto tudo agora exposto de forma humilhante perante os olhares de milhões de espectadores. O mesmo advogado de defesa que considerou incivilizada a apresentação à juíza não vislumbrou descarado aproveitamento na forma como o conduziu ao tribunal, em vez de optar, como fez à saída, por um acesso discreto através da garagem. O enorme ruído em torno do julgamento não deve, contudo, fazer esquecer a relevância daquilo que está em cima da mesa. É sobre a avaliação dos mais de 300 crimes em causa que deve focar-se a atenção, conciliando de forma equilibrada valores como a dignidade humana e o prosseguimento do trabalho judicial de apuramento de responsabilidades criminais e patrimoniais. A carga emocional em torno das audiências é de certa forma inevitável. Dos quase dois mil lesados com estatuto de vítima, 104 já morreram. E essa é a maior evidência da incapacidade do sistema perante casos complexos. Uma justiça que se arrasta anos e anos, sem dar respostas a quem a procura, falha nos seus princípios basilares. Podemos (e devemos) deter-nos em momentos singulares que desprotegem a pessoa humana, tenha ela o apelido que tiver, mas devemos sobretudo preocupar-nos com a degradação da justiça dentro da sua própria máquina do tempo. • Inês Cardoso – Jornal de Notícias - 16 outubro, 2024